sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Cão

Mais um de meus textos de 2006:


Cão


      Acordo de repente no meio da noite, na verdade antes do meio, em seu primeiro quarto talvez. O suor revelea minha perturbação. Abandono Felizbéia, o planeta em que vivo quando  canso deste. Não que ele só exista em meus sonhos, mas a passagem é mais barata quando se fecham os olhos. 
      Ora, antes de aprofundar em minha perturbação noturna, vou dedicar este parágrafo para falar um pouco de Felizbéia. Sim, estou decidido, Felizbéia merece este parágrafo: Felizbéia nem sempre foi assim, nem sempre existiu, pelo menos para mim. Descobri esse planeta três aniversários depois de ser internado (preso) no hospital psiquiátrico (hospício). Quando fui para Felizbéia pela primeira vez era um planeta um pouco vazio, mas gostei, bem melhor que esta prisão. Daí em diante não parei mais de visitá-lo e a cada visita Felizbéia ganhava novos detalhes, um prédio aqui, uma arvore lá, um cachorro acolá... Hoje passo mais tempo lá do que aqui, se pudesse nem voltava, mas os malditos horários! De almoço, de jantar...
      Ocorreu-me que esse meu depoimento sobre um mundo paralelo pode tê-los feito equivocadamente pensar que sou louco, mas que absurdo! Embora assuntos presentes possam parecer mais atraentes, recuso-me a continuar sem antes falar um pouco de meu passado: Sempre fui uma pessoa normal, mas nem sempre as pessoas foram capazes de perceber isso. Aliás, as coisas todas são a respeito da capacidade de percepção. E as coisas começaram a piorar quando comecei a perceber as coisas. Coisas como: as pessoas fedem. As pessoas são irritantes, ignorantes e vagabundas. Qualquer tipo de tentativa de se socializar significa se resignar com essas verdades absolutas. E eu me resignei o quanto pude.
      Desisti de aceitar esta enojante realidade quando conheci uma mais suprema e aceitável forma de vida. Foi como um trauma, tornei-me completamente intolerante à raça humana. Tinha nove anos, como criança inocente e infeliz pensava que tudo era como tinha que ser, acreditava que apesar de insuportável, a escola com aquela concentração ilógica de gente num mesmo lugar lugar era normal. Foi quando em certo dia de um certo fim de semana, fui levado a casa de um parente de minha mãe e, conseqüentemente, parente meu também. Não sei exatamente o grau de ligação, mas certamente não grande o bastante que justificasse a visita.
      Já tinha ido àquela casa umas duas ou três vezes e sempre tinha a certeza de que não ia mais voltar, mas criança não é dona do seu destino. Chegando na casa do parente, como sempre, me colocaram no quintal com a vã esperança de que eu fosse me divertir. Eu não estava sozinho, "Ah! Comprei um cachorro, não sei se ele tem medo...", e lá estávamos eu e ele. Já tinha visto cachorros antes, nos livros e na TV, mas pensava que eram detestáveis como os humanos, estava enganado, muito enganado. Jogado ao chão, exalava enorme sabedoria, não falava, e defecava sobre o chão indiferente ao que os outros pudessem pensar. O cachorro é indubitavelmente o maior exemplo de sinceridade existencial. Vivem sem perguntar porque vivem, simplesmente vivem porque vivem, sentem o que têm que sentir e fazem o que têm que fazer.
      A partir desta experiência não queria mais viver entre os humanos, percebi que a convivência em sociedade é inconcebível, passei a ignorar completamente as relações pessoais e dedicava meu tempo exclusivamente à contemplação da vida canina, passei a me comportar mais como um cão, embora soubesse que era apenas um humano. Quanto mais velho, mais este comportamento irritava as pessoas. Aos 18 minha mãe me aprisionou num hospício de onde nunca saí. Isolar-me da sociedade, talvez tenha sido correto, pena, porém, que em hospícios não há cães...
      Voltemos as minhas frustrações presentes... na minha cama sofro. Sim! Mais uma vez a percepção. De uma hora para a outra, num clarão de um raio, percebo o motivo da minha insônia - minha orelha. Quem diria? É impossível entender como em todos esses anos pude simplesmente deitar minha cabeça sobre o travesseiro e dormir. Como ignorar aquela massa de pele e cartilagem adjacente a minha cabeça? Agora que percebi, e este é o problema, fica insuportável dormir como este desagradável volume. Uma opção é dormir de "barriga para cima" de forma que as orelhas, não estando em contato com o travesseiro, não incomodem. Mas não me sinto confortável em fechar os olhos com o rosto para cima, desprotegido, para todos que podem eventualmente querer me matar.
      Como resolver então o problema? Assim como a pedra que irrita e machuca o pé quando dentro do sapato, a orelha precisa ser removida. Silenciosamente faço breves reflexões sobre as conseqüências que tal flagelação pode resultar. Lembro de Van Gogh, e diziam que ele era louco! O pintor serviu-me de inspiração, estava decidido, ia, como ele, cortar minha orelha fora!
      Mas não é tão simples assim, a dor em si não é o problema, mas o medo de senti-la. Fiquei por um bom tempo confrontando-me com a navalha em mãos. "Cortar ou não cortar? Eis a questão" . E de repente cá estou em Felizbéia. Cortei? Não sei. Em Felizbéia é assim, as coisas acontecem e eu não sei.
Lucas Nascimento Ferraz Costa   17/10/2006

9 comentários:

  1. Excelente!
    Sinceramente, o meu favorito do blog por enquanto.
    O homem significa a percepção do mundo do jeito que as pessoas diferentes o percebem: sujo e sem graça.
    A metáfora que você usou da orelha é fantástica.
    Enfim, podemos juntar os nossos contos e publicar um livro. hahaha :)

    Te amo.

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  2. Sim, podemos fazer um livro juntos : )

    Te amo.

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  3. excelente analogia de que cada um tem sua loucura e foda-se. entender o mundo é ser e viver na loucura. melhor se questionar do que tentar achar respostas do mundo... que no fundo sabe que serão frustrantes.

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  4. Obrigado Mayer, valeu pela visita : )

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  5. ps.
    não me admira a qualidade de seus textos hoje, se em 2006 já escrevia desta maneira. por tua causa tive a idéia que revirar meu passado tb.

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  6. Mais uma vez obrigado. Eu gosto de ler as coisas que eu escrevia no passado, antes tinha mais tempo para escrever narrações, algo que eu adoro fazer.
    Tenho que voltar a escrever para parar de postar textos antigos, hahahahahaha.

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  7. " o planeta em que vivo quando canso deste"
    Acabo de encontrar o blog para ler quando me cansar dessa blogosfera...
    Estou te seguindo!

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  8. Todas as respostas são frustantes...

    Pq falei isso?!

    Ahhh viajei aqui, não tente entender.

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