terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Amanhã


Amanhã não acordarei com um beijo quente na fria manhã; não despertarei minha cabeça ainda sonolenta com a água quente caindo sobre mim num reconfortante banho; não serei surpreendido no chuveiro pela pele macia da mulher que não tenho; não vestirei a camisa favorita que não ganhei no último aniversário que não celebrei; não tomarei o doce café que não foi preparado pela mulher que não estará na cozinha tostando os pães na torradeira que não tenho; não beijarei a testa do meu bebê deitado no berço, que não é mais bebê e não me ama; não passarei alguns minutos esquentando o motor do carro que não tenho enquanto minha mulher não fica na porta me observando com um olhar apaixonado que não encontrará meus olhos.
Não dirigirei até o trabalho que não tenho pensando numa promoção que não acontecerá; não chegando lá, não irei escrever os artigos que não são elogiados por toda a equipe do jornal do qual não estarei fazendo parte; no tempo que sobrar do horário do almoço, não olharei na internet a vitória do meu time que perdeu; não navegarei em vários sites de pacotes de viagens planejando a viagem à praia que não acontecerá nas férias de fim do ano com a família que não tenho; as férias que não terei no final do ano não darão ânimo para eu continuar, a tarde, a inspirada reportagem que não escreverei; no final da tarde, antes de voltar para casa, não serei chamado à sala do presidente do jornal e não serei promovido editor-chefe.
Saindo do trabalho, não passarei no mercadinho e não comprarei a cerveja que virou vinho; não chegarei em casa e não serei recebido por beijos apaixonados de minha mulher que não estará mais linda do que nunca; não darei a boa notícia que não terei e não teremos um excelente jantar de comemoração; não levarei meu filho que não me ama para sua cama e não lerei a história que ele não adora até ele dormir como um anjo; depois não irei até o quarto e minha mulher não estará me esperando com a camisola branca que não teremos comprado para celebrar o amor que só existe com nós dois; não nos amaremos a noite inteira; não conversaremos sobre a viagem para a praia que virou Paris; não planejaremos a área de churrasco que virou piscina; não dormirei na tranqüilidade do sono mais sereno que um homem pode ter.

Amanhã acordarei com o som dos meus músculos tremendo na desesperada tentativa de trazer calor à vida que congela na mais fria manhã. Meus braços, vacilantes, protegerão como a tudo o que têm e, na verdade, de fato tudo o que têm: um resto de garrafa de cachaça. Tomarei dois longos goles que ressuscitarão o cadáver que ainda teimava em viver. Ficarei jogado sobre o chão, sob a ponte, até que meu estômago raciocinará o que minha cabeça não consegue mais fazer, me fará levantar e procurar por restos de comida nos lixos. O poeta, naquela manhã, me observará e transformará minha miséria em arte, meu lixo em música. Durante a tarde as pessoas passarão de carro na avenida ouvindo a música sobre mim, cantarão a minha perda e rimarão minha covardia. Quando o dia tiver cansado e o sol tiver ido sem promessas de voltar, a noite trará o frio que voltará a matar o que ainda sobrou vivo de mim. Em um último suspiro inspirador o poeta encerrará a música narrando meu suicídio como um vôo à imensidão lírica das águas verdes do mar.
No dia seguinte as pessoas cantarão a nova música da estação e esquecerão da música de minha desgraça, mas minha desgraça será para sempre.

A desgraça é eterna.

 Lucas Nascimento Ferraz Costa    9/02/2010