domingo, 15 de novembro de 2009

O Retardado




Sempre gostei de escrever narrações, embora não me dedique muito à isso ultimamente em função da falta de tempo.
Escrevi este texto que vou publicar neste post em 2006, ou seja, há três anos (o tempo passa rápido). Espero que gostem:


                                 O Retardado

     Para evitar futuros constrangimentos, já adianto: eu sou o sujeito do título. Não que eu seja um retardado, mas é assim que me chamavam quando criança, e vocês sabem, essas coisas pegam. Puro preconceito! Admito que tinha alguns desvios comportamentais, uma certa debilidade intelectual, certamente alguma síndrome mental não diagnosticada, mas nada que me valesse esse pesado fardo. "Retardado! Retardado! Retardado!", gritavam. No começo me sentia irritado, até um pouco agressivo, depois virou apelido, e quando vira apelido é eterno. Era meu destino, ser o Sr. Retardado, e assim foram-se os anos...
     Mesmo a vida de um retardado como eu acaba se acertando. Sempre tive dificuldades de me socializar, não era minha culpa, as pessoas não eram dignas de minha amizade. Pelo menos era essa a teoria que me consolava, até eu conhecê-la. Não era linda, tampouco inteligente, mas cada um tem o que merece. E para o Sr. Retardado aqui, qualquer espécime humano do sexo feminino, que me doasse um mínimo de atenção, já era digna de ser a mulher perfeita.
     De tanto insistir, nos casamos, acho que ela nunca me amou, mas ter uma mulher ao meu lado me fazia esquecer da vergonhosa verdade sobre minha existência: um retardado odiado por todos. Era fato que ela me traía frequentemente o que me fazia arder de cíumes, mas só a possibilidade de um divórcio, de ela me largar - que era o que ela mais desejava e só não tomava esta decisão porque tinha dó de mim - me fazia conformado.
     E não é que parecíamos um casal normal? "Normal", eu repetia mentalmente. Não demorou para sermos uma família. Ela ficou grávida, um menino, um belo garoto, de tão belo e diferente de mim sempre desconfiei não ser realmente meu filho, mas na posição de retardado que me era imposta, nunca contestei tal possibilidade. Éramos afinal, se não uma família feliz, uma família normal.
     Como é belo o milagre da vida! Ela ficou grávida novamente, desta vez uma menina, agora eram dois filhos! Um casal, dois humaninhos que me pertenciam. Eram mais do que dois insgnificantes filhos, eram a prova viva de que meu apelido de retardado ficara para trás. Eu era mais um na enorme multidão da mediocridade, e como isso me agradava!
     Ser mais um, uma pessoa normal, deixar para trás os amargos gritos que sentenciavam minha posição de diferente, excluído, retardado, era tudo que eu sempre havia sonhado. Mas não era a verdade, minha mulher sabia disto, seus amantes sabiam e meus filhos quando crescessem saberiam. Montei uma farsa, um roteiro de uma tragédia, uma mentira insustentável. Mas o único que queria prosseguir com a mentira, que queria continuar atuando naquela peça que havia criado, era eu. E minha mulher deixava isto cada vez mais claro.
     Chegou a um ponto, no qual, sem a menor vergonha, ela passou a se deitar com seus amantes em nossa própria cama, sem ao menos se preocupar em esconder os vestígios de sua infidelidade. Passou a se ausentar sem dar satisfações, na verdade, ela nem me digiria mais a a palavra, vivia sua vida como se eu não existisse, uma solteira ao lado de seu marido. Só Deus sabe como isso me doía, eu sabia que não era normal, nem cuidar dos meus filhoes eu era capaz. Ela fazia tudo, educava as crianças em minha presença como se estivesse na presença de um abajur. O único motivo pelo qual a peça não tivera ainda seu trágico final era a falsa crença que tinha de que a sociedade me julgava uma pessoa normal.
     Tudo esfacelou-se naquela tarde quando, saindo para comprar pães - "Uma pessoa normal compra pães", pensei - ouvi no caminho dois jovens cochichando algo sobre mim, percebi, pois, olhavam disfarçadamente em minha direção. "Invejosos", sentenciei. Quase chegando à padaria, pude ouvir claramente a conversa de dois homens de idade:
     - Lá vem o retardado.
     - É, e ainda por cima é corno, sua mulher é uma vadia, todos já a tiveram.
     Foi o bastante, aquela puta! Mas nesta noite ela terá o que merece.
     Percebi que ela havia chegado pelo fedor. Como pude suportar aquele cheiro insuportável por tantos anos? E aquelas desgraçadas crianças que não se calavam nunca? "É agora", minha vingança me faria ser notado por aquela prostituta! Não era mais normal, nunca fora. Louco, insano, sádico, nunca imaginei o demônio que guaradava dentro d'alma, e que agora estava liberto. Liberto para se saciar de sangue, foi de uma coléra indescritível que decepei aquela vadia em pedaços enquanto os monstrinhos, frutos de seu ventre, assistiam sem entender, apavorados, rosnando e uivando como animais que eram.
     O derrame de sangue, selvagem, irracional, teve seu preço. Mas foi justo, fui mandado para o lugar a que pertenço, preso na jaula, junto dos outros animais. Hoje olho minha face no espelho do banheiro do manicômio. É a mesma de ontem, do mês passado, a de sempre, a de quem sempre fui, um retardado.

    

     Lucas Nascimento Ferraz Costa,  22/05/2006

    

8 comentários:

  1. hahahaha, UAU!
    muito bem! eu é que tenho talento para escrever, né?
    realmente só você tem capacidade para fazer um texto mais triste que os meus melancólicos.

    :)

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  2. Obrigado Gi!
    Tenho uns outros textos tristes, depois eu publico aqui.

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  3. mandou muito bem cara!
    agora ele pode usar seu apelido para auto-defesa

    gostei muito!

    ps: esclarecimentos dados no seu post da veja

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  4. ah, só pra não perder o hábito...te amo!

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  5. Caríssimo, tua literatura e veia jornalistica é voraz! extremo bom gosto este blog, serei novo seguidor, voltarei, abs

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  6. Caralho! O texto tem um ritmo alucinante! Comcei e me senti numa montanha russa! ótimo! voltarei com certeza!

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