sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pulei, mas não caí




Não é que estou desesperado, não é que o mundo está de cabeça para baixo, não são os problemas. Os problemas suscitam soluções, sob o caos repousa a esperança de dias melhores. Mas é que não tenho problemas, é justamente em função disto. Mormaço. Está tudo tão em seu lugar e meu lugar não é aqui. Desafiei o mundo durante toda minha vida e sempre fui vencido. O mundo me venceu, eu fracassei e fracassando percebi meu lugar – outro lugar.
Então, é justo nessa tarde de segunda – exatamente aquela tão distante de alguma tarde que poderia ter, por sua natureza, por seu lugar relativo aos outros dias do calendário, algum significado – que eu desisti. Para o alívio e a felicidade de todos que tiveram o desprazer de presenciar, de algum modo, minha fracassada tentativa de viver, eu desisti. Cheguei meio bêbado em casa, cambaleando as razões pelas quais sempre bebi, isto é, tentar ser algo que nunca fui. O álcool sempre foi muito simples em minha vida, eu bebo para engolir, para engolir a mim mesmo, aos outros, a minha vida. E, não à toa, meu estômago sempre foi fraco, minhas tentativas de digerir meu miserável cotidiano sempre acabaram no vaso sanitário.
Não por acaso me casei com a solidão. Não se sintam tristes por mim, nossa sociedade superestima os malefícios de se viver sozinho. Confesso, no entanto, já cambaleei, já ajoelhei sob os pés da vida, mas ela cuspiu em minha cara, graças a Deus. Mas não acredito Nele; morrer, se deixar morrer, ter papel predominante em sua própria morte, não tem necessariamente e, na verdade, raramente tem alguma relação com a suposta vida após a morte; diz respeito ao agora e ao nunca mais. Mas, enfim, embora já tenha fraquejado, eu persisti em meu único princípio de vida – não ter princípios, confrontar os princípios, desafiar o mundo. É por isso que nunca casei, nunca me entreguei resignado, ao lado de uma cúmplice, aos grilhões da escravidão os quais o mundo em sua cínica conveniência chamou de viver.
Mas ser um contestador, ainda que se apresente a mim como a única alternativa possível, é escuro e silencioso. Meu apartamento não tinha nada que me convidasse a voltar da rua, mas já experimentou dormir na sarjeta? Não cheguei em casa decidido, mas não foi uma decisão imediata que tomei enquanto olhava a vista da sacada do oitavo andar, o vento que toca minha face enrugada (precocemente)... e como seria poético se balançasse meus cabelos que, no entanto, o mundo, pois é, resolveu levar... Não foi fruto de nada disso. A decisão foi se desenvolvendo à luz ( na verdade à falta dela) dos anos, durante cada segundo mal vivido que sonhavam, embora temessem, o dia em que simplesmente deixariam de ser vividos.
Meu desafio final, enfim vencerei o mundo. “Ainda que esteja morto viverá”, bom, talvez não, mas a morte é minha, é o modo final de olhar para o mundo e dizer-lhe triunfante, depois de tanto dele ter apanhado: “Tchau, cretino!”. Joguei-me enquanto, num microssegundo, que precedeu o início de minha queda, me deparei com um dilema que, agora, pensando bem, deve ser clássico aos mortos voluntários. Pensei sobre o caráter de minha decisão, seria ela uma demonstração de coragem ou de covardia? Em um relance poético sentenciei: “Covardia corajosa!”. Coragem covarde? Nada disso. Pulei, mas não caí.
Uma fábula surge em minha cabeça. Ela é recorrente em minha vida, como um pesadelo que martela em minha mente, todos os dias, durante anos, só que ela aparece diante de mim quando estou acordado. Fui eu quem criou, do nada – como num sonho. Nela eu sou um cão – e acaba aqui o que há de positivo na fábula. Estou farejando algo ao longo de um labirinto. Mas não farejo um odor, farejo uma idéia – não sei qual. Quanto mais intensa e densa a idéia que farejo, mais para dentro do labirinto estou e, portanto, mais perdido. Quando sei que estou muito perto dela, de repente não sou mais um cachorro. Sou um humano, sou eu mesmo. Perdido e sem faro. Daí em diante vago perdido pelo labirinto, sem saber se em busca de uma idéia a qual não me resta nem um remoto traço da época em que ainda gozava dos talentos caninos, ou se da saída a qual quanto mais procuro mais distante estou. E, assim, vivi infeliz para sempre...
Não sei ao certo porque esta fábula me veio neste momento, o fato é que pulei, mas não caí. Não posso dizer com precisão o que me acabou de acontecer, na verdade desconfio da dos fatos que se sucedem, embora os testemunhe. Pulei da sacada e ao invés de cair eu subi. Não como um balão de hélio; o mundo virou de ponta cabeça e, em um primeiro momento, eu andava no céu como se este fosse um chão sólido e, acima da minha cabeça, estava o chão, agora céu. Mas foi assim só por um momento, em seguida o céu voltou para cima da minha cabeça e o chão estava sob meus pés – eu estava intacto, pisando a calçada em frente ao meu prédio. As pessoas andam alheias, os carros seguem seus caminhos ignorando o que acabou de acontecer.
Não obstante o fato fantástico que acabara de se suceder, embora a o mundo tivesse dado uma volta ao redor de mim, algo permaneceu igual. Desafiei o mundo e fui vencido. Tentei desfrutar do único aspecto de minha vida que cria dominar, mas, oras, não caí! “E por quê?” gritei, em súplica, com os braços voltados para os céus, em uma cena cinematograficamente ridícula. Como o silêncio me respondeu, segundo o esperado, nada, resolvi, num lúcido (se considerarmos as circunstâncias) acesso de insanidade (se levarmos em conta a literatura psiquiátrica), eu mesmo responder. Mas não era exatamente eu... ok, o diálogo acabou de tender fortemente para o lado da loucura. “Porque escolheu um adversário muito grande para vencer sozinho. E ao mesmo tempo não tem o apoio de uma sombra sequer. Cuspiu em todos os princípios da guerra, quis o mundo sem nem ao menos ter controle de si próprio. És um fracasso em si mesmo, qualquer tentativa de conquistar qualquer aspecto da vida se traduz na exteriorização de seu fracasso interno...” e continuaria me ofendendo ad infinitum se eu não interrompesse. Parece, de certo modo, um diálogo com minha baixo alto-estima, ou a visão crítica sobre mim mesmo (latente e escondida em algum canto de meu subconsciente), que são, na verdade, as mesmas coisas. Mas não era. De fato alguma força exterior tomou conta de meu corpo e, assim, construía um diálogo comigo mesmo.
“O que eu podia fazer?” respondi em tom de alto-piedade. “Não nasci para aceitar a pressão do mundo. O que poderia fazer se não tenho os meios para mudá-lo? Aceitar? Nasci com a peça da resignação faltando...” no que a ‘entidade’ retrucou: “Nasceu sem quase nada, na verdade. Caso a construção da vida fosse uma linha de montagem, você seria um refugo, um produto estragado que fugiu aos olhos do controle de qualidade. Mas não é este o problema... nascem pessoas erradas todos os dias...” “Mas a maioria delas passa pelo mundo sem serem percebidas”, interrompi triunfante, crendo em minha superioridade revolucionária. “...Mas és uma fraude. És o protótipo da fraude. Veste Napoleão, Marx e Gandhi, mas és oco; tens a roupa, mas lhe falta aquilo a que ela veste. Quando a fortuna lhe bate a porta, te falta virtú.” Eu não consigo acreditar: “Está sendo injusto... a sorte só conheço de nome. O mundo sempre me negou oportunidades, sempre contrariou meu projeto...”. “Vejo que as palavras se esgotarão sem preencher a nada. Vou tentar fazê-lo entender de outro modo. Ande, faça o caminho daqui até o parque central; esta caminhada, acredito, mudará sua vida”.
São cinco ou seis quarteirões de meu prédio até o parque central. Embora cético quanto à possibilidade daquela caminhada “mudar minha vida”, comecei a andar. As previsíveis ruas noturnas dessa cidade expõem seus tantos transeuntes que desfilam a sujeira que os respeitáveis cidadãos sempre escondem do público, guardando entre quatro paredes, com um efeito de hipocrisia moral. Em um caso ou no outro, o resultado final é mediocridade.
“Seu grande problema. Talvez o pior dos seus inimigos, aquele a quem nunca sequer ousou enfrentar... mas continua andando, não creio que esteja pronto para aceitar”. Diante daquelas palavras, continuei meu caminho, jogando meus olhos críticos a cada detalhe que me cerca. Há menos de meio quarteirão está aquele bar iluminando a esquina com as trevas espirituais dos alcoolizados que, diferente de mim, bebem para celebrar a decadência humana. A mesma humanidade que, tão logo se fez existir, desce as escadas rumo ao precipício sem fim da vida. Já em frente do bar, falei comigo, quero dizer, falaram comigo através de mim: “Te vejo sentado no bar compartilhando suas frustrações tão menos únicas quanto você faz parecer em suas observações idiotas sobre os bêbados quase a caírem no chão”. Não respondi, não entendi bem o que quis dizer, ele... eu... enfim. Mas aquelas palavras entraram de um jeito curioso em minha cabeça, a serem digeridas pela reflexão de meu raro discernimento racional. Para calar o constrangedor silêncio, continuei andando. Já estou próximo do parque central e, no entanto, minha vida ainda não havia mudado para sempre... Lá está Mucoco, o vira-lata preto e cinza, sujo e fedorento, deitado em frente à fachada daquela padaria. Isso quer dizer que já passam das quatro. Sempre uma hora antes das cinco, que é a hora que a padaria abre, o cão espera por um pedaço pão, que sempre recebia do bondoso, embora burríssimo, padeiro. Passar por lá àquela hora significava uma oportunidade de eu lembrar como os cães são superiores aos humanos – sinceros e belos, roem o mundo e sobrevivem a ele o enfrentado. “Certo” – começou aquela voz – “agora você está delirando. Você admira os cachorros sobretudo porque são incapazes de reconhecer a si próprios. Mas o que neles é incapacidade, em você é fraqueza, é covardia”. “O que exatamente quer dizer com isso?”. “Ainda não. Chegue ao parque, está quase entendendo, acho. Mas antes chegue ao parque.”
O parque estava fechado, ele abre às seis horas. “Devo esperar?”. “Já esperou demais. Leia a placa”. O portão metálico tinha uma placa parafusada a ele. Nunca havia lido nada além das palavras em destaque, escritas em letras maiúsculas: “FECHADO”, mas havia um texto interessante o qual nunca reparei, lê-se: “Horário de funcionamento: das 6h às 20h”, mas não é esta a parte interessante, o texto segue: “O Parque Central não funciona durante a noite. Por favor, pedimos sua compreensão, os animais precisam descansar. As regras têm sentido, As regras se baseiam nos hábitos dos animais. As regras são naturais.”. Estava a contrariar a mim mesmo, a desconfiar de minhas convicções, passo a estranhar a mim mesmo...
A voz então começou: “Não que eu tenha que lhe dar satisfação, mas me preocupo com sua incredulidade, com sua teimosia doentia... este é o primeiro ponto. O segundo ponto... você já se deu conta? Sobre o quão comum tu és? Que você mesmo, tanto quanto aqueles que te rodeiam, é um medíocre. Encare isso, você é medíocre. Percebe a mediocridade em cada esquina, em cada bar, igreja, padaria ou escola, mas não percebe aquela que lhe está mais próxima, sua própria mediocridade. Aquilo que te limita, aquilo que está entre suas ambições e o mundo – você.”
Não precisei responder, tremi diante da realidade e meu semblante traduziu que eu acabara de digerir as coisas que sobre mim se jogaram ao curso de minha vida, mas, sobretudo, digerira a mim mesmo e só assim pude entender, mais ou menos, o mundo e a vida sob os olhos de uma pessoa que renasce justamente através das bases as quais sempre tentei derrubar – as da resignação, mas agora sobre uma nova visão: aceitação da realidade.
“Agora já pode cair.”.
Caí, morri, venci e perdi – vivi.

domingo, 3 de outubro de 2010

Não entendo a fé política




Escrever sobre política, hoje em dia, é complicado. É como escrever sobre religião. Ora, seja para acreditar nas palavras de um político, seja para acreditar em um deus, é preciso fé. E quando se trata de fé não há discussão, se acredita e pronto. A diferença fundamental que me leva a escrever sobre política e questionar as decisões feitas neste meio e não no campo da fé religiosa é que os militantes são crentes de deuses vivos. Deuses que, convenhamos, estão mais para demônios.
É claro que se muda o mundo usando da fé religiosa, se faz guerras, e até se ganha prestígio na política, mas daí é política vestida de religião – é política e ponto final. Eu poderia dar milhares de exemplos de coisas que parecem religião, mas são, na verdade, política: a Igreja, por exemplo, é a santa instituição criada por Jesus Cristo para cuidar de assuntos religiosos aqui na terra, certo? Errado! É uma instituição política que nos tempos livres dá palpites religiosos, embora diga o contrário. E olha que eu sou católico praticante. As coisas humanas são por natureza, ou melhor, por suas origens sociais, política. E se Jesus pediu para homens cuidarem de seus assuntos divinos enquanto ele estivesse ao lado direito de Deus, lá em cima, ele deixou coisas religiosas sob o cuidado da política, com todos os riscos que isso pode acarretar e, de fato, acarretaram ao longo de mais de dois mil anos. No fundo, no fundo, toda religião é política, pois, a despeito do que elas pregam, são todas humanas.
Mas e a política mesmo? Digo, aquela sobre a qual nos ocupamos aqui no Brasil a cada dois anos? É difícil falar sobre ela, é complicado dizer qual candidato é melhor que o outro, mas é, sobretudo, impossível entender como algumas pessoas se entregam com tamanha paixão e devoção a uma escolha política na política brasileira de hoje.
Vamos simplificar: a corrida eleitoral para a presidência do Brasil a partir de 2002. Neste ano, concorreram como principais candidatos José Serra (PSDB) e Lula (PT). Neste ano ainda era compreensível as paixões que se moviam. O PT ainda estava com sede de poder, depois de perder todas as eleições para presidente desde 1990, Lula enfim parecia que ia ganhar, e ganhou em 2002 de Serra. Vejo sentido nas emoções que esta conquista do operário pobre que virou presidente despertou na população, nos vencedores e nos perdedores. Entendo a militância ideológica nesta época, embora eu já a considere ingênua, ao menos ela fazia sentido – tínhamos de um lado o projeto de continuidade conservadora dos tucanos que temiam o barbudo socialista do partido de bandeira vermelha e que era, ora pois, dos trabalhadores. Do outro lado havia os ainda nostálgicos petistas, da época de um PT que era um partido dos trabalhadores, preocupado com os interesses dos trabalhadores. Parecia, e eu disse “parecia”, uma disputa entre direita e esquerda. Pelo menos nas aparências havia dois projetos bem distintos. Foram oito anos de poder, e a cada ano que passou o PT foi morrendo, ou melhor, foi se adaptando a política que temos hoje, foi se tornando o PSDB.
Mas no meio deste processo, entre estes oito anos de Lula, houve outras eleições em 2006: Alckmin conta Lula. Oposição contra posição. Oposição de quê? PT e PSDB se confundiam. Quatro anos foram suficientes para que o Partido dos Trabalhadores mostrasse que, a despeito da bandeira vermelha (que remete a simbologia socialista) e o “trabalhadores” no nome, não havia nada mais de socialista ou de trabalhador nele. Era o PT, mas poderia ser o PSDB. Em 2006 deu o PT, deu Lula de novo, e lá se foram mais quatro anos de PT – que poderia ser PSDB. Alguém notaria a diferença? Talvez o Alckmin e sua equipe tucana não tivessem tido a criatividade de marketing para seus projetos sociais tanto quanto teve o Lula com os geniais “Bolsa Família” e “Fome Zero” – porque o marketing social do PT, ao longo destes oito anos, foi brilhante. E Lula tem virtú que é aquela coisa que Maquiavel, em “O Príncipe”, compara com fortuna. Se trouxermos os conceitos para os dias de hoje, virtú englobaria as qualidades que se atribuem a um bom político, no sentido de parecer ser um bom político e não necessariamente sê-lo. A fortuna são as oportunidades que cada político recebe independentemente de merecimento próprio – guardem isso, vou usar quando falar da Dilma Roussef. Então, tirando o marketing social e a virtú  do Lula, os governos PT e PSDB foram, salvo pequenas diferenças e, a despeito das expectativas que haviam com a posse do Lula, em 2002, rigorosamente iguais.
Então, depois de oito anos de PSDB com o então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) e oito anos de PT com Lula, chegamos a 2010. Em 2010 a disputa é, de novo, entre PT e PSDB. Pois é, já perdeu a graça. São sempre os mesmos partidos, mas é pior, são os mesmos partidos que são, na verdade, as mesmas coisas. Hoje o PT é o PSDB, com a diferença de que o PT ainda usa a estrela vermelha e o Lula ainda é barbudo o que acaba por assustar alguns direitistas conservadores. Para algumas pessoas a embalagem política ainda faz alguma diferença, mas daí precisavam avisá-los que passaram a vida inteiro votando num partido que se veste com o nome da social-democracia. O PT é hoje tão vermelho e “dos trabalhadores” quanto o PSDB sempre foi social-democrata.
Mas nada disso importa porque, ao que parece, PT e PSDB ainda são na política brasileira o que Brasil e Argentina são no futebol mundial, ou o que judeus e palestinos são para a paz mundial. E é precisamente isso que não consigo entender. É claro que se deve escolher entre Serra e Dilma Roussef, do PSDB e do PT, respectivamente, mas não necessariamente respectivamente, mas, por acaso, respectivamente. Não vejo absolutamente um ponto em que se diferem. É claro, Serra tem carreira política, já se sabe o que esperar dele, qual é seu projeto (ou falta de projeto) e sua visão política. Basicamente continuar a política neoliberal – mas não tão radical quanto na Inglaterra de Thatcher – iniciada no governo FHC, mesclada com migalhas de assistência social. Exatamente como fez Lula em seus oito anos, só que este, como já observei acima, soube se aproveitar da propaganda para que todos os pobres do Brasil tivessem a certeza de que o dinheiro que recebem  é fruto da generosidade do presidente. Maquiavel se orgulharia de Lula, ele é o príncipe do Brasil, fosse outra época, ele passaria décadas aqui e sendo amado pelo povo.
Mas se Maquiavel daria nota dez para Lula, desprezaria sua criação: Dilma Roussef. Dilma não tem virtú nenhuma, não sabe falar em público, não tem carisma, é feia e parece ser má (e não em um bom sentido maquiavélico) – eu tenho medo dela, não de suas políticas, mas dela, de sua horrível imagem que continua sendo pavorosa mesmo com o que há de mais tecnológico a disposição para fazer dela uma política apresentável. Mas o Lula tem tanta virtú que disse para o povo:
- Esta porca feia é minha candidata, votem nela e continuarão recebendo o bolsa família. Ela é feia como o satanás, mas é minha candidata. O Serra vai privatizar o bolsa Família.
E o povo vota na Dilma, há um ano nenhum bolsista do programa social do Lula sequer tinha ouvido falar dela – e ela quase levou no primeiro turno. Isso é fantástico, falem o que quiserem do Lula, mas ele merece um lugar de destaque na história dos grandes líderes da história mundial. Mas no fundo são dois projetos iguais de continuidade, por isso não entendo quando alguém se exalta em defesa de um de outro candidato. Defender Dilma ou Serra é a mesma coisa que defender Skol ou Brahma, você pode até preferir uma a outra, mas não vai ter uma crise se não tiver a marca de sua preferência em um churrasco. Pois então, me espanta como ainda persistem eleitores que acreditam em algo que não está lá.
Muitas pessoas te olham com indignação se você diz: “estou INDECISO, mas ACHO que, TALVEZ, eu vote no Serra...”, logo respondem:
- Serra?!?!?!?! Você está louco? O Serra é um monstro!!! Ele vai assassinar a educação, vai dar meio salário mínimo para os professores e vai levá-los a um campo de concentração. Vai privatizar as ruas, sua casa, seu cachorro, seus livros, sua esposa, sua mãe!!! Blá, blá, blá...
Eu concordo com ressalvas. Mas, sinceramente, e daí? E a outra candidata? Ela não herda uma mesma política de completo descaso com a educação pública? Educação não é tanto para um quanto para o outro um meio de obter fins políticos? Não é por isso que criou projetos como o Reuni e o Prouni? Que se aparentemente são muito bons:
- Eba! Meu filho é um retardado analfabeto, mas agora graças ao PT vai pra facuuuuul!!!
Mas que faculdade é essa? É aquela em que nossos avôs e nossos pais estudaram? Ou é uma que está em processo acelerado de sucateamento? Em que se colocam professores recém formados para dar aula em uma turma de cem alunos? Uma faculdade que não consegue atender os interesses mínimos de seus alunos, que é produtora de ciência por excelência, mas não tem programas de iniciação cientifica para quase ninguém, que falta instalações e equipamentos? Que bosta de projeto educacional é este do PT que é tão melhor que o do satânico José Serra?
E sobre as privatizações: o PSDB achou legal por um tempo privatizar as coisas, eu não concordo com isso, mas alguém viu o Serra defendendo, em algum momento, as privatizações? O Serra não vai mais privatizar nada e não porque não concorde com isso, mas porque é algo impopular e a única coisa que ele ou a Dilma querem assim que subirem a rampa do Planalto, no dia Primeiro de Janeiro de 2011, é planejar sua reeleição em 2014 – então esqueçam educação, esqueçam projeto de longo prazo, pensem em medidas eleitoreiras, pensem em enganação – este será o seu Brasil pelo menos nos próximos quatro anos.
Um nome merece aparecer aqui, merece aparecer em algum lugar – é o de Plínio Arruda de Sampaio. Ele fez a eleição ser algo mais que monótona, mas menos de 1% dos eleitores brasileiros notaram. Plínio foge do padrão de se fazer política de hoje, e hoje a política é triste, a democracia é triste. É triste porque nos acomodamos, é triste porque sabemos que está ruim, mas não está ruim o suficiente para querermos que melhore. Porque as grandes coisas só aparecem por trás da poeira levantada do caos – então que venha o caos porque entre Serra e Dilma eu prefiro anular meu voto.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Ode to Madness



Nada que me parecesse estranho era, no final das contas, estranho. Era comum, banal, como uma bala no cano, como um tiro disparado, como uma cabeça estourada, como uma vida que se ia.  E vão, ainda que você não se dê conta, elas vão e não voltam. As vidas.
Subindo as escadas, as escadas que descem até o precipício da vida - a morte. É o caminho inevitável. Não sou pessimista nem realista, sou um rato que cruza o caminho e desvia das ratoeiras até que elas são muito reais, até que são mais reais que o desvio delas – aí é tudo tão irreal.
É tudo da minha cabeça, é claro. Mas não deixa, assim mesmo, de ser. Mas não é para os outros. E isso é difícil porque os outros são mais do que você; para os outros evidentemente, mas, eventualmente, também pra você. Somos muito mais os outros do que pensamos, somos muito menos nós mesmos do que queremos ou podemos admitir. Somos cópias mal feitas dos vermes que nos rodeiam; pegamos o que há de pior em cada desprezível espécime de idiota na face da terra e chamamos isso de eu. Grande merda, você é uma merda maior ainda por ser você, se esforce para evitar isso – ser você. Não queira isso e, sobretudo, não encare isso como uma coisa positiva.
E, talvez por isso, eu prefiro ser minhas idéias, meus pensamentos distorcidos, fujo do que parece correto, porque só parece correto porque não é. Então vivo no incomum, no que as pessoas pisam e que pisam exatamente porque tem muito valor, porque as coisas pisadas são dignas da indiferença de cada podre alma humana, não há nada mais a se almejar que não isso. Em minhas idéias, em exclusivo àquelas das quais você ri, e ri porque está viciado em sua própria idiotice a qual compartilha com todos que riem COM você de tudo aquilo que ri DE você. Tudo ri silenciosamente de você, de cada aspecto patético de ser você, de ser um ridículo macaco com o prolixo e, mais ainda, duvidoso dom da inteligência. Enfim, estas minhas idéias, exatamente estas que riem de você, em silêncio para que você não ouça o que lhe é demasiado para o que tem de tão pouco – aquele negócio que faz uns macacos serem chamados de humanos, você tem um nome para isso, inteligência. Eu também sou, lamentavelmente, vocês, mas sou cada vez menos o quanto mais me fixo nessas idéias que são estranhas a vocês. E hoje posso dizer que sou quase tão elas que acabo sendo tão estranho a vocês que acabam me vendo no espelho quando abrem os olhos... quem sou eu? Tempo, tic, tac, tic, tac...
Ora, sou vocês, o que todos vocês seriam caso não fossem tão covardes em admitir o quão estranhos são a si mesmos sendo assim, normais.

Porque às vezes um pouquinho de loucura é saudável à sanidade.

domingo, 18 de julho de 2010

É preciso saber viver?



É preciso saber viver, mas não se sabe como. Ela surge como uma exigência covarde dos outros à você e à sua vida; covarde porque todos dizem para você viver corretamente sem saber nem ao menos o que isso pode significar. Ele esperava por coisas grandes, porque era fantástico, era um gênio, um futuro brilhante o aguardava – tinha certeza. Só que ele não era o tal, nem era parte daquilo que vivia acreditando ser, ele era apenas medíocre, mas viveu como se fosse alguém a mais do que era, alguém que vivia com a promessa de tudo que lhe aguardava; exceto que nada lhe aguardava, que nada lhe fora prometido, nada além de sua falsa crença sobre si mesmo.
Muitos diriam que ele é um coitado, vivendo sua vida fracassada, mas isso é apenas um ponto de vista. Sua vida não seria vista como fracassada se  se levasse em conta que ele tem exatamente o que seus talentos lhe possibilitariam ter, isto é, quase nada. A todos destina-se quase nada, e, no entanto, insiste-se em dizer que estes são fracassados. Fracassados de que vida? Uma vida que não lhes pertence, nunca fora suas, só lhes pertencera em sonhos. Sonhos vendem-se em todas as esquinas da grande cidade, mas o que esquecem de dizer é que poucos poderão comprá-los. Pois ele não pôde.
Não queiram, portanto, condenar as pessoas por não serem o que não são. E, sobretudo, não condenem a si mesmos por não serem o que nunca poderão ser. Há dois maus que cabe a humanidade evitar, um deles, o mais comum, eu ignoro aqui. Não porque é evidente ou pouco importante, mas porque não é a história que estou contando. Falo das pessoas que subestimam suas próprias capacidades, está cheia de pessoas que impõe limites a si próprias que são maiores que suas escassas capacidades. Isso é sim triste, mas não é o problema dele, e é dele quem falo. Ele foi incapaz de evitar o segundo mal.
Ser comum e viver como se fosse alguém especial, eis o segundo mal. Ser frustrado é sua sina. Não importa o que se faça, nenhum feito seu é maior do que si mesmo, nada pode mover o que é imóvel. Não se enganem, o acaso só existe para quem não o procura. Se você o procura e o encontra, encontrou outra coisa, pois o acaso simplesmente não se acha – ele te acha. Então, se eu pudesse dar uma dica de como se viver eu diria pra você viver segundo o que tu és, não segundo o que queres ser. Não se fruste e não se acanhe, apenas faça o que faria porque é o que você pode fazer.
Tolice, porque eu apenas alertei, mas não disse o mais importante, não disse quem você é. Não sei. Não sei quem tu és nem quem sou, isso a vida ensina, então aprenda. Ele não aprendeu. Uns nunca aprendem.


sexta-feira, 2 de julho de 2010

Aquele Domingo (Parte I)

Este é um texto que escrevi e ficou meio grande, por isso vou postar no blog em várias partes, mais ou menos como capítulos de uma novela. Na verdade, apesar de ter a ideia completa do "conto", não a terminei de escrever, mas já tenho bastante coisa.



Buscava inusitada lógica na constelação de falta de razões. Eu não estava chapado, o mundo é que estava estranho aquele dia – estranho como um sonho, mas eu estava acordado. Acordei bem cedo pra falar a verdade, e eu odeio acordar cedo. Dormir é uma das coisas que mais me davam prazer (e ainda dão, embora o presente não venha ao caso), isso é triste. Era domingo, dia que nenhuma obrigação idiota lhe faz acordar cedo, acordei cedo porque quis. Num domingo, isso me espantou, de verdade.
O que fazer numa manhã vazia de domingo? Eu (percebi isso naquele dia) nunca havia vivido uma manhã acordado, a não ser quando tinha que acordar para ir a alguma aula idiota ou um trabalho mais idiota ainda, mas nunca havia acordado cedo e ficado refém de minhas próprias vontades em um oceano de oportunidades. No caso eu era um naufrago que não conhecia o mar; isso é apavorante se você parar para pensar, pois não há nada para fazer em um domingo de manhã. Nada.
De qualquer modo, eu não acordei na forma de um cachorro como Mandi, que é um cachorro, meu cachorro. A bizarrice daquele dia ainda nem começou a ser narrada, eu diria, embora eu tenha estranhamente, por minha própria vontade, acordado cedo, bem cedo. Não eram nem oito horas quando acordei, acho. Um bom tempo depois que me levante da cama, vi no microondas da cozinha que ele marcava 8:04h. Aquele relógio do microondas sempre estava errado, mas não tão errado, nunca exato entretanto. Minha casa fedia, ele sempre estava fedendo e parecia (e era) escura e feia, eu odiava aquela casa. Era suja provavelmente porque nunca fiz uma faxina nem contratei alguém para fazê-la; eu só varria, de vez em quando, o grosso da sujeira para os cantos e, de semanas em semanas, eu jogava alguns lixos, como embalagens e restos de comida, no terreno ao lado que era um terreno abandonado – ninguém compraria aquele terreno, ninguém construiria uma casa naquela merda de rua, nem que ela ficasse a venda por vinte séculos.
De qualquer modo, eu estava com fome – é por isso que estava na cozinha; havia uma chance maior de encontrar alguma coisa pra comer lá, mas não tanto. Tinha muita coisa estragada, podre, ou com uma aparência muito ruim; tinha um lanche de... acho que presunto. Eu odeio presunto e aquele presunto nem cheirava a presunto. Contemplei aquele lanche repugnante por minutos, foi a única coisa que encontrei a qual eu podia cogitar comer, e eu estava com fome, realmente estava. Mas não comi o lanche; tinha uma couve-flor no fundo da geladeira – eu não faço idéia do que uma couve-flor fazia naquela merdade de geladeira, eu odeio couve-flor, ela estava fresca ( se é que se poder dizer isso de alguma coisa em minha casa) no entanto. Teria que me contentar em passar fome ou tomar alguma atitude.
Geralmente eu sento e espero as coisas acontecerem, mas era domingo de manhã e nada acontece num domingo de manhã, nem o acaso. Até Deus estava dormindo. Encontrei minha carteira em meu quarto, entre umas cuecas e camisetas usadas – nossa, como aquelas roupas fediam! Estavam lá jogadas desde a Renascença, eu provavelmente nunca as levaria para a lavanderia, pensei em jogá-las no terreno ao lado do qual eu falei, como os outros lixos, mas aquilo me pareceu, de algum modo, errado, então simplesmente as deixei lá. Dentro da carteira tinha um pouco de dinheiro, o suficiente para comprar algo decente para comer, acho. Tinha diversas outras coisas na carteira, a maioria lixo eu que nunca mais precisaria, mas que por algum motivo eu guardava, mas tinha também coisas interessantes, acho. Mas eu estaca com fome, então focalizei minha atenção nesse fênomeno, muito comum em nossa sociedade, de transformar dinheiro em comida. Eu não fazia idéia de tinha alguma coisa perto de minha casa que estaria aberto vendendo comida em um domingo de manhã. Eu não sairia de casa sem ter na cabeça ao menos uma boa idéia de onde eu iria. Sou um cara um pouco preguiçoso, tenho que adimitir. E era domingo de manhã, por Deus! Resolvi, então, ir até a sala e sentar naquele sofá de couro rasgado. A sala estava escura e fedia, mas o quarto tinha uma atmosfera ainda mais depressiva, então até que foi bom ter ido para a sala.
Encontrei espaço entre os restos de embalagens, lixos e o que mais que tivesse lá, e consegui sentar no sofá. Aquele sofá era bem confortável; eu gostava dele, mas estava sempre sujo e cheio de coisas sobre ele. Mesmo assim sentei nele e comecei a pensar onde podia comprar alguma para comer. Não fazia idéia, abre no domingo de manhã? Alguém sai de casa num domingo de manhã para comprar alguma coisa? Lembrei de uma padaria que ficava à umas quatro quadras de casa, foi o melhor que consegui lembrar. Eu nem sabia se estaria aberta, isso me deu um desânimo e, como que me entregando àquela algoz chamada preguiça, deixei meu corpo se esparramar sobre o sofá como um saco de cimento pesado que só poderia ser tirado de lá a custas de muito esforço. Eu nem estava mais com tanta fome.
Eu estava quase dormindo, lá no sofá mesmo, quando o telefone tocou. Eu sabia que tinha um telefone escondido e, algum canto daquela sala, mas não sabia que ele ainda podia tocar. Por algum motivo aquele toque irritante me alegrou; encontrei o aparelho a tempo, enquanto ele ainda tocava. Quem poderia ser, tinha o pressentimendo de que se tratava de alguma coisa importante, mas o que é o pressentimento?
   CONTINUA...



quinta-feira, 13 de maio de 2010

Absurdo



“Você está chovendo”. O que faz dessa afirmação um ultraje à normalidade aparente que repousa desesperada no fresco ar dos bosques, pronta a precipitar em insanidade sem limite; um quê sem nome que faz de nós – mas não todos nós – normais. O que desafia este teatro e nos leva aos bastidores de sua mente não é que não chovia, mas que não molhava. Pois a todos faria sentido que cada um chovesse se ao mesmo tempo molhasse; a chuva molha e, não obstante, ele não molhava, logo não podia estar chovendo.
Mas ainda assim vejo chuvas secas em cada um, não é meu objetivo me defender de minha loucura, ela me pertence, assim como pertence ao seio da humanidade. Nada disso, no entanto, importa. Se, hipoteticamente, um homem bem vestido, de terno, não terno vagabundo, daqueles xiques, um cara claramente importante que além do terno que enfeitava seu respeito, vestia importância – isso ficou claro em seu olhar, seu andar, em seus gestos, salvo seu indicador direito. Sou observador e digo, seu indicador direito lhe entregava seu íntimo, ou seja, sua sujeira, pois no íntimo somos todos nós sujos, podres e, às vezes, por mais que resistamos a sujeira nos escapa de algum modo, transborda de nossos corpos; no caso, pelo indicador direito: fraco, vacilante. Mas, de qualquer modo, este homem importante vem e lhe pergunta (como voltaria a perguntar muitas vezes):
- O que é absurdo?
“O que é? As pessoas choverem, talvez?”
- Você pode fazer melhor.
Posso, de tantas coisas, tanta gente, é algo que chamaria de pretensioso chamar a mim mesmo e às minhas idéias de absurdas.
- E o que é absurdo – ele insiste.
Talvez eu precisasse de tempo para pensar e, no mais, não é uma boa idéia deixar um sujeito importante esperando, de sorte que ele já foi (acabou de ir) e desde então o relógio marca as horas que faltam para ele voltar.
Naquele dia saí de casa e fui andando por aquelas ruelas semidesertas, era quase dia quase noite, mas nem amanhecer nem entardecer, vai entender. Os vultos passavam por mim sem despertar o mínimo interesse. Naturalmente; por que razão haveria de me despertar interesse aquelas pessoas indo para o lugar nenhum de seu cotidiano, cantando em uníssono o hino do silêncio? Cientistas da ignorância, escravos dos outros presos dentro de si mesmos, servos voluntários, pessoas que fogem a mim. As pessoas são interessantíssimas se observarmos detalhadamente, mas naquelas ruas escuras, iluminadas por uma sobra de luz suja, elas eram como formigas percorrendo seus caminhos pré-estabelecidos. Tedioso.
Acontece que naquele mesmo caminho, naquele mesmo desinteresse que ilustrava minha mente, caiu um meteoro de interesse, um meteoro que na verdade era uma estrela cadente e que naturalmente brilhava, e se já não há “surpreendente” o suficiente nesta metáfora, me surpreendeu o fato de se tratar de uma pessoa. Mas não uma pessoa qualquer, uma pessoinha; eu diria se tratar, mas não com certeza, de uma criança. Ela engatinhava no chão, este certamente imundo e isso, apesar de estranho, não é um absurdo, de modo que me perturbava com tão pouco tempo sobrando ocupar minha atenção em algo tão sem importância.
Peguei a criança no colo; não sei segurar crianças, então a segurei como se fosse uma bolsa e me surpreendi quando percebi que na verdade era uma bolsa. Apesar do escuro enxergava-se, sem muito risco de erro, se tratar de uma bolsa amarela. Com o braço direito segurei a bolsa pela alça, ela era pesadíssima. Tão pesada que eu não poderia segurar, mas segurava; a segurava na medida em que me parecia o certo a se fazer. Achei melhor abrir a bolsa só quando estivesse de volta para casa, o conteúdo me parecia muito importante para tão indignas ruas; minha morada não era sequer digna de mim mesmo, mas ainda assim convidaria Jesus Cristo a entrar se estivesse mendigando naquelas ruas sujas.
Cheguei em casa, aliviado. Não. Corrigindo: aflito, o coração escaparia por minha boca caso eu a abrisse, mas apesar disso, em casa. Certifiquei-me de que a rua não pudesse invadir minha casa, cerrei a porta e as janelas, e fechei as cortinas. Quero dizer, mantive-as fechadas como já estavam quando cheguei. Fiz tudo isso enquanto ainda carregava a bolsa com a mão direita, de modo que meu braço não suportava mais aquele peso. Coloquei-a cuidadosamente sobre o chão e ela me encarou. Ao mesmo tempo que parecia pedir para que eu a abrisse, parecia adiantar a terrível surpresa que me esperava. A morte seria o consolo de minhas preocupações.
A bolsa tinha uma única abertura, fechada a zíper. Puxei o zíper em um só movimento escancarando uma abertura pela qual saiu aquilo que, não por acaso, pesava tanto. “O mundo sai desta bolsa!” exclamei com um contido entusiasmo cheio de pavor.
- Quase – era o homem de terno que estava atrás de mim observando aquela cena. – Este é o absurdo. – sentenciou.
Era o avesso do mundo, saiu da bolsa e se projetou no universo com tudo que lhe pesava, “são os humanos”, explicou o homem de terno. “E o que sobrou?”, perguntei. “Sobrou você, tirando todo o absurdo do mundo sobrou você”. Mas eu vivo neste planeta, “você vive nele e seus filhos vivem, tímidos e pequenos vocês existem”. Vivo eu e o pouco que há de mim num mundo este em que sou louco, que sou absurdo.



Tumor




Gregori estava completamente desinteressado e de certa forma eu lhe dava razão. Mas por motivos diversos, eu estava com minha cabeça em outro lugar e ele com ela em lugar nenhum. Assistíamos a apresentação por mera formalidade, mas, em verdade – isso me ocorreu de repente – toda minha vida tem sido vivida por baixo das saias da falsidade. Minha vida tem se resumido a sentar em poltronas de anfiteatros, cheirar o ar gelado e mofado por horas a fio, enquanto homens, em geral pouco importantes, mas, sobretudo, pouco autênticos, falavam tudo menos qualquer coisa que poderia me interessar ou interessar a alguém. As vezes eu falava para outros “eus” sentados nas poltronas olhando os relógios como que tentando apressar o tempo, mas com o efeito contrário.
Hoje o tempo parou e o cara não parava de falar; eu chutaria que já falava por séculos não fosse tão familiarizado com tudo aquilo. A contra gosto aceitaria se tratar de não mais que uma hora, não obstante estava mais frio que o comum e, eu sentia um calor que viria da alma caso existissem coisas como almas. Mas não existem, é elegante em minha carreira ser cético e ateu, características que atestam uma certa legitimidade àqueles discursos vazios que, no entanto, são intermináveis, intermináveis! Perdão pela minha histeria, não se trata de um estado de espírito normal, mas é o caso que nesta manhã estou um pouco aflito, nervoso, desesperado. E Gregori, desgraçado, parecia meditar! Tantos anos respirando o ar podre dos – confortáveis – notáveis da mediocridade burguesa pareciam ter enfim resultado em alguma espécie de dano grave a minha saúde. Algum tipo de tumor, assim suponho, se desenvolveu parte em meus pulmões, parte em meu estômago. Hoje, nesta manhã, o tumor parecia dançar dentro de meu corpo. E só não o vomito porque tenho enorme experiência em engolir coisas indigestas; à força tudo se acomoda, em minha carreira não se pode colocar para fora o que não presta, de sorte que não me dou ao avesso por aí.
Minha peculiar interação com meu tumor, com o qual travei uma complexa negociação que consistia na busca de um bem comum para ambos, fez o tempo passar sem que eu notasse e, o palestrante estava para lá da metade de suas palavras de encerramento, de modo que o fim da apresentação coincidiria, com sorte, com um acordo entre eu e meu tumor nos seguintes termos: “tendo em vista que meu corpo é sua e minha morada, para um convívio aceitável você até me sufoca – isso é resultado de seu tamanho e nada se pode fazer em relação a isso – , mas não dance!”. E, de fato, o tumor me deu uma trégua assim que a palestra se encerrou. Saí com pressa enfrentando indesejados cumprimentos, sempre indesejados e falsos é verdade, mas se soma hoje minha necessidade de cair fora daquele anfiteatro e com urgência conversar com Gregori sobre a terrível noite anterior, a noite em que fomos monstros. Em verdade, monstros que somos.
Me dei com o exterior, o ar quente e úmido, impregnado de uma fumaça preta e pesada, mas respirar no momento é luxo. Gregori ainda não havia saído e, provocantemente, demorava. Quando saiu, visto livre de falsos cumprimentos, dirigiu-se a passos largos para seu carro tentando driblar as pessoas no seu caminho. Gregori é alto, demasiado, e andava rápido em direção ao seu carro, de modo que para alcançá-lo tive que trotar. Ele já quase entrava no carro quando, a uns cinco metros dele, tive que gritar:
- Gregori, Gregori! – ele olhou para trás, mas só porque foi impossível ignorar meus gritos; seu rosto carregava o “Oh, Deus! Foi por pouco...” num sincero e manifesto desgosto em trocar palavras comigo. Normalmente eu também faria questão de evitar uma conversa com ele, mas preciso falar sobre ontem. Oh, ontem...
- Ralmi... – é meu nome, eu o odeio até mais que odeio o cotidiano de minha vida, mas acho que, de certa forma, o mereço – Estou com um pouco de pressa...
- Precisamos falar sobre ontem – fui seco e direto, minha, nossa especialidade é a falsidade, mas a ocasião dispensava rodeios formais.
- Não há nada para se falar sobre ontem – Gregori se esquivava do assunto enquanto já projetava seu enorme corpo para dentro daquele carro ( a imagem dele dentro do carro era cômica e eu não sei se isso alivia ou intensifica a tensão da situação).
É apavorante e, de certo modo, surpreendente o modo relapso com o qual Gregori lidava com o pesadelo da noite anterior, de modo que tive que protestar:
- Matamos! Somos assassinos! E a uma criança! – minhas palavras soaram pouco mais altas do que eu queria ou do que era prudente se tratando de tão comprometedora confissão, mas mais do que isso, revelou a sinceridade de meu desespero.
- Está morto, falou bem, de sorte que não temos que enterrá-lo. Morto, não fala. Ontem morreu junto com ele todos os traços de nossa culpa. Então, Ralmi meu caro, esqueça. Esqueça assim como já esqueci; tão cedo hoje despertei, ontem não me existia mais; nada, nem culpa, nem remorso, nem ressaca. – Gregori parecia sincero em cada palavra, a noite anterior parecia não lhe tocar de modo algum e, seu cérebro em consonância com seu coração se operavam em um só mecanismo de racionalidade jurídica. Mas eu, ao contrário, estou devastado e nenhuma garantia de não implicações legais conseguia sequer me consolar:
- Como acordar e esquecer de ontem se sequer consigo dormir? Um câncer nasceu dentro de mim e ele se mexe vigorosamente! – o tumor voltava a se mexer rompendo o acordo agora pouco estabelecido, mas não só dançava: fazia um carnaval. A cólera (seu nome, como me revelou agora) indignou-se diante da passividade de Gregori (e talvez do mundo).
Gregori respirou fundo e já dentro do carro sentenciou através da meia janela aberta:
- Ralmi, sem formalidades, foda-se seu remorso. Digira-o, roa-o e remoa-o, mantenha em seu rabo, procure a bosta de um analista, entorpeça-se, que seja... mas não abra a porra dessa sua boca. Entendeu? Agora, estou com pressa, vou indo. – fechou toda a janela e ligou o motor do carro.
Atônito, nada pude fazer. A ameaça de Gregori me deixou perplexado, mas meu estômago parecia se rasgar (e na verdade se rasgava), os pulmões tornaram-se incapazes de captar oxigênio, o tumor dobrou ou triplicou de tamanho. Indigesto. Depois de engolir a merda de toda a parte durante toda minha vida, vomitei aquele tumor para fora e ele parecia carregar tudo aquilo.
Aquele tumor do tamanho de um porco médio saiu por minha boca e projetou-se direto sobre o capô do carro diante do pára-brisa dos olhos do, agora apavorado, Gregori. Não era só um tumor, tinha o formato de um tumor, mas tinha olhos de maldade – de toda a maldade que engoli e ruminei por todos estes anos; bocas com dentes da crueldade e dureza da verdade – a verdade que omiti por toda a minha vida. Indomável. A criatura pulsava a violência da vingança não só do garoto assassinado ontem, mas de tudo o que sempre esperou por vingança em toda minha vida, tudo que repousou em passiva negligência.
Infelizmente não me encontro em condições de narrar toda a fúria da criatura colérica, mas ela me pareceu soar a justiça; esta minha certeza talvez pudesse me redimir de meus erros, mas enquanto vou, sei que não mereço nada mais do que ir e, no entanto, vou com um certo orgulho de dentro de mim ter saído algo que levou tantos juntos e espero que exista um inferno para acomodá-los, porque a terra não lhes é merecida.