quinta-feira, 13 de maio de 2010

Absurdo



“Você está chovendo”. O que faz dessa afirmação um ultraje à normalidade aparente que repousa desesperada no fresco ar dos bosques, pronta a precipitar em insanidade sem limite; um quê sem nome que faz de nós – mas não todos nós – normais. O que desafia este teatro e nos leva aos bastidores de sua mente não é que não chovia, mas que não molhava. Pois a todos faria sentido que cada um chovesse se ao mesmo tempo molhasse; a chuva molha e, não obstante, ele não molhava, logo não podia estar chovendo.
Mas ainda assim vejo chuvas secas em cada um, não é meu objetivo me defender de minha loucura, ela me pertence, assim como pertence ao seio da humanidade. Nada disso, no entanto, importa. Se, hipoteticamente, um homem bem vestido, de terno, não terno vagabundo, daqueles xiques, um cara claramente importante que além do terno que enfeitava seu respeito, vestia importância – isso ficou claro em seu olhar, seu andar, em seus gestos, salvo seu indicador direito. Sou observador e digo, seu indicador direito lhe entregava seu íntimo, ou seja, sua sujeira, pois no íntimo somos todos nós sujos, podres e, às vezes, por mais que resistamos a sujeira nos escapa de algum modo, transborda de nossos corpos; no caso, pelo indicador direito: fraco, vacilante. Mas, de qualquer modo, este homem importante vem e lhe pergunta (como voltaria a perguntar muitas vezes):
- O que é absurdo?
“O que é? As pessoas choverem, talvez?”
- Você pode fazer melhor.
Posso, de tantas coisas, tanta gente, é algo que chamaria de pretensioso chamar a mim mesmo e às minhas idéias de absurdas.
- E o que é absurdo – ele insiste.
Talvez eu precisasse de tempo para pensar e, no mais, não é uma boa idéia deixar um sujeito importante esperando, de sorte que ele já foi (acabou de ir) e desde então o relógio marca as horas que faltam para ele voltar.
Naquele dia saí de casa e fui andando por aquelas ruelas semidesertas, era quase dia quase noite, mas nem amanhecer nem entardecer, vai entender. Os vultos passavam por mim sem despertar o mínimo interesse. Naturalmente; por que razão haveria de me despertar interesse aquelas pessoas indo para o lugar nenhum de seu cotidiano, cantando em uníssono o hino do silêncio? Cientistas da ignorância, escravos dos outros presos dentro de si mesmos, servos voluntários, pessoas que fogem a mim. As pessoas são interessantíssimas se observarmos detalhadamente, mas naquelas ruas escuras, iluminadas por uma sobra de luz suja, elas eram como formigas percorrendo seus caminhos pré-estabelecidos. Tedioso.
Acontece que naquele mesmo caminho, naquele mesmo desinteresse que ilustrava minha mente, caiu um meteoro de interesse, um meteoro que na verdade era uma estrela cadente e que naturalmente brilhava, e se já não há “surpreendente” o suficiente nesta metáfora, me surpreendeu o fato de se tratar de uma pessoa. Mas não uma pessoa qualquer, uma pessoinha; eu diria se tratar, mas não com certeza, de uma criança. Ela engatinhava no chão, este certamente imundo e isso, apesar de estranho, não é um absurdo, de modo que me perturbava com tão pouco tempo sobrando ocupar minha atenção em algo tão sem importância.
Peguei a criança no colo; não sei segurar crianças, então a segurei como se fosse uma bolsa e me surpreendi quando percebi que na verdade era uma bolsa. Apesar do escuro enxergava-se, sem muito risco de erro, se tratar de uma bolsa amarela. Com o braço direito segurei a bolsa pela alça, ela era pesadíssima. Tão pesada que eu não poderia segurar, mas segurava; a segurava na medida em que me parecia o certo a se fazer. Achei melhor abrir a bolsa só quando estivesse de volta para casa, o conteúdo me parecia muito importante para tão indignas ruas; minha morada não era sequer digna de mim mesmo, mas ainda assim convidaria Jesus Cristo a entrar se estivesse mendigando naquelas ruas sujas.
Cheguei em casa, aliviado. Não. Corrigindo: aflito, o coração escaparia por minha boca caso eu a abrisse, mas apesar disso, em casa. Certifiquei-me de que a rua não pudesse invadir minha casa, cerrei a porta e as janelas, e fechei as cortinas. Quero dizer, mantive-as fechadas como já estavam quando cheguei. Fiz tudo isso enquanto ainda carregava a bolsa com a mão direita, de modo que meu braço não suportava mais aquele peso. Coloquei-a cuidadosamente sobre o chão e ela me encarou. Ao mesmo tempo que parecia pedir para que eu a abrisse, parecia adiantar a terrível surpresa que me esperava. A morte seria o consolo de minhas preocupações.
A bolsa tinha uma única abertura, fechada a zíper. Puxei o zíper em um só movimento escancarando uma abertura pela qual saiu aquilo que, não por acaso, pesava tanto. “O mundo sai desta bolsa!” exclamei com um contido entusiasmo cheio de pavor.
- Quase – era o homem de terno que estava atrás de mim observando aquela cena. – Este é o absurdo. – sentenciou.
Era o avesso do mundo, saiu da bolsa e se projetou no universo com tudo que lhe pesava, “são os humanos”, explicou o homem de terno. “E o que sobrou?”, perguntei. “Sobrou você, tirando todo o absurdo do mundo sobrou você”. Mas eu vivo neste planeta, “você vive nele e seus filhos vivem, tímidos e pequenos vocês existem”. Vivo eu e o pouco que há de mim num mundo este em que sou louco, que sou absurdo.



Tumor




Gregori estava completamente desinteressado e de certa forma eu lhe dava razão. Mas por motivos diversos, eu estava com minha cabeça em outro lugar e ele com ela em lugar nenhum. Assistíamos a apresentação por mera formalidade, mas, em verdade – isso me ocorreu de repente – toda minha vida tem sido vivida por baixo das saias da falsidade. Minha vida tem se resumido a sentar em poltronas de anfiteatros, cheirar o ar gelado e mofado por horas a fio, enquanto homens, em geral pouco importantes, mas, sobretudo, pouco autênticos, falavam tudo menos qualquer coisa que poderia me interessar ou interessar a alguém. As vezes eu falava para outros “eus” sentados nas poltronas olhando os relógios como que tentando apressar o tempo, mas com o efeito contrário.
Hoje o tempo parou e o cara não parava de falar; eu chutaria que já falava por séculos não fosse tão familiarizado com tudo aquilo. A contra gosto aceitaria se tratar de não mais que uma hora, não obstante estava mais frio que o comum e, eu sentia um calor que viria da alma caso existissem coisas como almas. Mas não existem, é elegante em minha carreira ser cético e ateu, características que atestam uma certa legitimidade àqueles discursos vazios que, no entanto, são intermináveis, intermináveis! Perdão pela minha histeria, não se trata de um estado de espírito normal, mas é o caso que nesta manhã estou um pouco aflito, nervoso, desesperado. E Gregori, desgraçado, parecia meditar! Tantos anos respirando o ar podre dos – confortáveis – notáveis da mediocridade burguesa pareciam ter enfim resultado em alguma espécie de dano grave a minha saúde. Algum tipo de tumor, assim suponho, se desenvolveu parte em meus pulmões, parte em meu estômago. Hoje, nesta manhã, o tumor parecia dançar dentro de meu corpo. E só não o vomito porque tenho enorme experiência em engolir coisas indigestas; à força tudo se acomoda, em minha carreira não se pode colocar para fora o que não presta, de sorte que não me dou ao avesso por aí.
Minha peculiar interação com meu tumor, com o qual travei uma complexa negociação que consistia na busca de um bem comum para ambos, fez o tempo passar sem que eu notasse e, o palestrante estava para lá da metade de suas palavras de encerramento, de modo que o fim da apresentação coincidiria, com sorte, com um acordo entre eu e meu tumor nos seguintes termos: “tendo em vista que meu corpo é sua e minha morada, para um convívio aceitável você até me sufoca – isso é resultado de seu tamanho e nada se pode fazer em relação a isso – , mas não dance!”. E, de fato, o tumor me deu uma trégua assim que a palestra se encerrou. Saí com pressa enfrentando indesejados cumprimentos, sempre indesejados e falsos é verdade, mas se soma hoje minha necessidade de cair fora daquele anfiteatro e com urgência conversar com Gregori sobre a terrível noite anterior, a noite em que fomos monstros. Em verdade, monstros que somos.
Me dei com o exterior, o ar quente e úmido, impregnado de uma fumaça preta e pesada, mas respirar no momento é luxo. Gregori ainda não havia saído e, provocantemente, demorava. Quando saiu, visto livre de falsos cumprimentos, dirigiu-se a passos largos para seu carro tentando driblar as pessoas no seu caminho. Gregori é alto, demasiado, e andava rápido em direção ao seu carro, de modo que para alcançá-lo tive que trotar. Ele já quase entrava no carro quando, a uns cinco metros dele, tive que gritar:
- Gregori, Gregori! – ele olhou para trás, mas só porque foi impossível ignorar meus gritos; seu rosto carregava o “Oh, Deus! Foi por pouco...” num sincero e manifesto desgosto em trocar palavras comigo. Normalmente eu também faria questão de evitar uma conversa com ele, mas preciso falar sobre ontem. Oh, ontem...
- Ralmi... – é meu nome, eu o odeio até mais que odeio o cotidiano de minha vida, mas acho que, de certa forma, o mereço – Estou com um pouco de pressa...
- Precisamos falar sobre ontem – fui seco e direto, minha, nossa especialidade é a falsidade, mas a ocasião dispensava rodeios formais.
- Não há nada para se falar sobre ontem – Gregori se esquivava do assunto enquanto já projetava seu enorme corpo para dentro daquele carro ( a imagem dele dentro do carro era cômica e eu não sei se isso alivia ou intensifica a tensão da situação).
É apavorante e, de certo modo, surpreendente o modo relapso com o qual Gregori lidava com o pesadelo da noite anterior, de modo que tive que protestar:
- Matamos! Somos assassinos! E a uma criança! – minhas palavras soaram pouco mais altas do que eu queria ou do que era prudente se tratando de tão comprometedora confissão, mas mais do que isso, revelou a sinceridade de meu desespero.
- Está morto, falou bem, de sorte que não temos que enterrá-lo. Morto, não fala. Ontem morreu junto com ele todos os traços de nossa culpa. Então, Ralmi meu caro, esqueça. Esqueça assim como já esqueci; tão cedo hoje despertei, ontem não me existia mais; nada, nem culpa, nem remorso, nem ressaca. – Gregori parecia sincero em cada palavra, a noite anterior parecia não lhe tocar de modo algum e, seu cérebro em consonância com seu coração se operavam em um só mecanismo de racionalidade jurídica. Mas eu, ao contrário, estou devastado e nenhuma garantia de não implicações legais conseguia sequer me consolar:
- Como acordar e esquecer de ontem se sequer consigo dormir? Um câncer nasceu dentro de mim e ele se mexe vigorosamente! – o tumor voltava a se mexer rompendo o acordo agora pouco estabelecido, mas não só dançava: fazia um carnaval. A cólera (seu nome, como me revelou agora) indignou-se diante da passividade de Gregori (e talvez do mundo).
Gregori respirou fundo e já dentro do carro sentenciou através da meia janela aberta:
- Ralmi, sem formalidades, foda-se seu remorso. Digira-o, roa-o e remoa-o, mantenha em seu rabo, procure a bosta de um analista, entorpeça-se, que seja... mas não abra a porra dessa sua boca. Entendeu? Agora, estou com pressa, vou indo. – fechou toda a janela e ligou o motor do carro.
Atônito, nada pude fazer. A ameaça de Gregori me deixou perplexado, mas meu estômago parecia se rasgar (e na verdade se rasgava), os pulmões tornaram-se incapazes de captar oxigênio, o tumor dobrou ou triplicou de tamanho. Indigesto. Depois de engolir a merda de toda a parte durante toda minha vida, vomitei aquele tumor para fora e ele parecia carregar tudo aquilo.
Aquele tumor do tamanho de um porco médio saiu por minha boca e projetou-se direto sobre o capô do carro diante do pára-brisa dos olhos do, agora apavorado, Gregori. Não era só um tumor, tinha o formato de um tumor, mas tinha olhos de maldade – de toda a maldade que engoli e ruminei por todos estes anos; bocas com dentes da crueldade e dureza da verdade – a verdade que omiti por toda a minha vida. Indomável. A criatura pulsava a violência da vingança não só do garoto assassinado ontem, mas de tudo o que sempre esperou por vingança em toda minha vida, tudo que repousou em passiva negligência.
Infelizmente não me encontro em condições de narrar toda a fúria da criatura colérica, mas ela me pareceu soar a justiça; esta minha certeza talvez pudesse me redimir de meus erros, mas enquanto vou, sei que não mereço nada mais do que ir e, no entanto, vou com um certo orgulho de dentro de mim ter saído algo que levou tantos juntos e espero que exista um inferno para acomodá-los, porque a terra não lhes é merecida.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Nada

    
     Oriundo de nenhum lugar, vindo com o vento e sem pressa de chegar. Sou eterno, sou instantâneo, sou o nada. Enquanto lá fora é dia, naqueles corredores escuros daqueles prédios cinzas eu sou a luz que sai por debaixo de cada porta e que quando você abre não há nada. Eu sou o interruptor que desliga e que no escuro não se enxerga, pois sou, afinal, o nada. Sou mais importante que quase tudo, preencho o vazio e o vazio é infinito, as coisas são exceções e eu sou a regra.

     Subestimam-me assim como eu sou subestimável, pois se vive no nada, para nada e, no entanto, só importa aquilo que é algo, o resto, o ínfimo, as coisas que acontecem quando vou cochilar. Mas não é fama que quero, sou imperador do universo e cada pó é um súdito meu, sou, por assim dizer, deus. Pouco me importa se rezam para mim, se a mim dedicam algum mísero minuto de cada um de seus desprezíveis dias – gotas d’água num oceano de vácuo e solidão.

     Mas é até engraçado como os homens ilustram seu dia de um cotidiano que lhes parece, por algum motivo que desconheço, fazer algum sentido. É impressionante como apesar de viverem em mim e para mim, como em suas vidas curtas como um espirro da galáxia, conseguem desprezar o fato de que nada são, foram ou serão. Não me irrita, mas certamente me intriga a ingenuidade que repousa no fato de ignorarem minha existência.

     Mas hoje lembrei. Lembrei porque me ignoram, porque vivem alheios ao meu domínio, lembrei de tudo. Lembrei que sou, na verdade, escravo deles, eles são meus senhores e eu vivo em função deles. Porque o nada não faz sentido se eles não existem para ser alguma coisa. Sem eles eu sou o nada e como só há nada eu sou tudo e, por conseguinte, eu não existo.

     Sim, eu nasci, não sou eterno, mas humano, frágil como sua existência. Ora, me lembro daqueles macacos andando, dando significado às coisas, fazendo símbolos do nada, lanças das pedras, fogo de pedaços de pau; lembro quando me pariram em sua criatividade humana. Mas junto com essas lembranças que me vieram como que do nada lembrei de outra coisa: não existo.

     Ao me reconhecerem, ao me escreverem, ao me desenharem, mesmo em sua arte, em seus símbolos, os humanos fazem de mim pensamento e assim não posso ser mais o que sou, não posso ser mais que uma idéia do “nada”. O nada é algo e, portanto, não existe como nada.



Lembrei de outra coisa, não me cabem memórias, não me cabe nada; ao nada, nada.