quarta-feira, 16 de julho de 2014

Viva la Vida


Elesabia. Seu andar despretensioso e seu sorriso cínico podia enganar todos, mas ele sabia. Ele era culpado e não dava a mínima para isso. Ele o fez por puro prazer. Ele não tinha motivo para se arrepender. Ele era uma pessoa feliz.
Não podia confiar em pessoas que gostavam de mim. Eu já sabia o que podia se esperar de mim. Não fui colocado neste mundo exatamente para trilhar os ensinamentos de Cristo, sempre achei. Queria poder ser um ateu mais convicto, ou quem sabe um religioso com mais fé. Mas continuava acordando todos os dias de manhã sem saber se agradecia a Deus por mais um dia ou se lamentava de não ter tido alguma forma de morte silenciosa enquanto dormia. Não quero ser dramático, mas a convencionalidade melancólica de minha vida me incomodava. Eu simplesmente não conseguia entender como as pessoas conseguiam ser tão felizes com esta vida de merda que vivem.
Não odiava a vida, pelo contrário, olha tudo o que se pode fazer dela... e que não fazia! Faltava fazer algo. Minha vida era um desperdício. Mas tudo pode mudar de uma hora para outra para quem tem sorte, fortuna. Você só sabe quem é de fato quando começa a viver. Alguns – a maioria certamentemorrem antes. Mas um meteoro atingiu a mediocridade de minha vida colocando fogo no gelo do cotidiano. Eu tinha um trabalho burocrático num escritório de um grande prédio no centro da capital. Eu era muito bom no que fazia e isso era o suficiente para que eu continuasse fazendo. Eu me sentia seguro e infeliz, portanto, era bem sucedido.
Meu trabalho ocupava boa parte de minha vida, uma calculada rotina. Eu tinha vida social (é estranho que não se tenha nenhuma vida social e, portanto, é seguro manter um mínimo de contato com as pessoas), embora não ousasse me aventurar em relacionamentos pelo perigo que representavam. Eu tinha medo demais para abrir mão do que já tinha em nome de algo tão incerto quanto o amor. De qualquer forma eu não tinha muito jeito com as mulheres e nunca tive chance com as mulheres pelas quais realmente senti algo (ou as que eu realmente queria comer, pelo perdão da sinceridade). Um pouco constrangedor falar de mulheres para mim, na verdade. Freud diria que minha vida sexual/amorosa era a principal raiz de minha frustração e, talvez, no fundo, ele estaria certo. Não quero, no entanto, transformar isso em lamentações pseudo-psicanalistas de mesa de bar, mas confesso que citar Freud me fez sentir um pouco menos envergonhado de minha condição em relação a isso. A ciência também serve para essas coisas. 
Mas tudo mudou. Eu nunca percebera antes, mas minha frustração em relação ao meu pau, às mulheres e a bosta de minha vida podiam ser canalizadas em outras coisas. Foi quase como minha primeira ereção, só que melhor e mais empolgante. Eu fiquei realmente excitado. Mas não é uma prática muito aceita e eu precisei ter cautela.
Agir com cautela significa esconder suas vontades. Esconder suas vontades significa agir de acordo com o que esperam de você. Viver de acordo com o que esperam de você significa viver exatamente como eu já vivia. Mas eu fiz melhor. Como estava feliz e empolgado com minha descoberta, realmente me dediquei àquelas coisas que sempre odiei. Elas pareceram até mesmo menos tediosas do que eram. Eu conheci the bright side of life. Eu vi bebês chorarem e as cores do arco-íris, que vida maravilhosa! Sim, até comecei a ouvir jazz e, embora não entendesse completamente, eu sentia sua beleza e alegria. 
Ah, a descoberta! Foi num domingo. Eu sempre tive depressão nos domingos, pois neles eu era obrigado a enfrentar a realidade de que eu trabalhava e trabalhava por um salário que eu poderia gastar para aproveitar os domingos, mas que ao contrário da expectativa eu desperdiçava lamentando que no dia seguinte eu voltaria a trabalhar num emprego que odiava. Mas nada de interessante nisso, quase todos que eu conhecia se sentiam do mesmo jeito em relação aos domingos, segundas e todos os outros dias da semana.
Mas aquele domingo foi diferente. Eu vivia sozinho em uma casa. Meus colegas diziam que era perigoso viver sozinho em uma casa por causa da violência e eles estavam certos, afinal já tinha sido assaltado duas vezes. Mas eu não dava a mínima, quero dizer eu tinha medo, mas eu tinha pavor de morar em apartamentos. Apartamentos obrigam interação social, obrigam que você veja pessoas nos elevadores, que você pergunte sobre o filho da vizinha do 102 para quem você não dá a mínima (afinal se você pega um elevador no décimo andar, os segundos até chegar no térreo são eternos e você precisar falar qualquer merda), obriga que você cumprimente o porteiro quando você sai... e quando você volta. É ridículo, artificial e deprimente. Em uma casa morando sozinho você pode pelo menos sofrer a vida em paz.
Chovia neste domingo. Passava jogo de futebol na TV, era final do campeonato de futebol. Eu gosto de futebol, mas como meu time já havia sido eliminado do campeonato eu nem liguei a TV e ao invés disso peguei uma cadeira e me sentei no jardim da frente de casa com uma garrafa de cerveja gelada (dava até pra ser um pouco feliz nos momentos de embriaguez) para ficar observando a rua vazia (em domingos de jogos importantes as ruas ficavam desertas). Eu escolhi o time errado, o deus errado, a profissão errada e aparentemente o pedreiro errado: o jardim da frente tinha uma cobertura de telhas. Eu havia tido problemas de goteira, por isso recentemente contratei um pedreiro para que resolvesse este problema. Acontece que agora que sento em minha cadeira no jardim eu percebo que ele não resolveu... De qualquer forma continuei sentado com as gotas caindo na minha cabeça, eu não estava dando a mínima.
Foi quando uma gritaria e barulhos de rojões quebraram o silêncio do deserto das ruas. De dentro das casas pessoas em êxtase comemoravam a conquista do título. Aquilo era deprimente para mim, nada me deixava mais triste que a felicidade alheia quando EU não podia estar feliz. Atravessando a rua apareceu um pequeno cachorro, acho que não era filhote, mas era pequeno. Um vira-lata branco com manchas marrons, ele tremia de medo com todo aquele barulho de rojões. Eu já estava um pouco bêbado e aquele cachorro me pareceu engraçado e me trouxe uma estranha felicidade dentro da alma. Acuado pelo medo ele acabou entrando em meu jardim. Foi quando percebi que o que me deixou feliz era seu medo. Aquele tremor, o pavor em seus olhos me deu um indescritível prazer. O cachorro veio até mim, ele achava que eu podia protege-lo de uma ameaça que só existia em sua cabeça. Eu estava bastante bêbado na verdade. Eu peguei o pequeno cachorro no colo e o levei para dentro de casa.
O cachorro tentava se esconder embaixo dos móveis e tremia muito. Eu comecei a gargalhar como uma criança e lembrei que tinha guardado alguns rojões para soltar quando meu time fosse campeão. Pra falar a verdade eu não sabia se eles ainda funcionavam. Estavam guardados há muitos anos dentro de uma caixa em cima do armário do quarto. Coloquei uma caixa de fósforos da cozinha no bolso e levei uma cadeira para o quarto para alcançar o topo do armário e pegar a caixa. Na primeira tentativa eu tropecei da cadeira e levei um baita tombo batendo as costas com força no chão. O cachorrinho ficou assustado com o barulho e foi até perto de mim. Olhei para ele e comecei a rir sem controle. Cara, como eu estava bêbado e feliz naquele momento! Tentei subir de novo na cadeira e consegui puxar a caixa. Ela estava toda empoeirada e me ocorreu que a faxineira provavelmente nunca tinha limpado encima daquele armário, “vagabunda!”, pensei, enquanto ria e olhava para os olhos assustados do cachorro.
Coloquei a caixa sobre a cama e retirei um rojão de dentro. Meu pai havia me ensinado a soltar rojões há muitos anos quando meu time fora campeão pela última vez. Acho que eu tinha uns dez anos. Minha mãe não gostava daquelas coisas, mas eu adorava. Foi a única vez que soltei em minha vida, mas não era algo que exigia muita técnica ou habilidade o que se evidenciava pelo fato de tantos imbecis estarem vagando embriagados pelas ruas da cidade soltando milhares de rojões para comemorar a conquista de seu clube. Aqueles babacas!
Eu acendi um dos rojões e apontei para o cachorro que corria pela casa assustado. Ele não sabia se se escondia embaixo da cama, ou se vinha procurar proteção perto de mim. O primeiro rojão explodiu com violência no canto da sala, a uns dois metros do cachorro. Você faz ideia do barulho que um rojão faz quando ele explode dentro de uma sala fechada? Cara, pensei que o cachorro ia morrer. Nunca tinha visto tanto medo quanto o medo que vi nos olhos daquele cão e nunca sentira tanto prazer em minha vida. Nunca estivera tão feliz.
Acendi um segundo rojão e tentei atirar contra o cachorro novamente, mas errei feio e acertei o sofá. Achei que ele ia entrar em chamas, mas nada demais aconteceu. Peguei um terceiro rojão e acendi, mas ele não disparou. Nesta hora fiquei muito irritado com a sorte do cão. Meio que sem pensar fui até a cozinha e peguei embaixo da pia uma garrafa de álcool. Eu estava tão bêbado que precisei me sentar no chão para conseguir pegar a garrafa. Quando o cão me viu sentado no chão foi correndo para o meu colo e se enrolou sobre mim buscando proteção. Seria comovente para muitas pessoas, para mim foi uma imagem patética. Aproveitei que ele estava lá e despejei a garrafa de álcool toda sobre ele, tomando cuidado para que eu também não me molhasse (mas acabei me molhando um pouco, eu não estava dando da mínima). Tirei o cachorro do colo, acendi um dos fósforos que estavam no meu bolso e lancei no cachorro encharcado de álcool. Foi quando vi um delicioso espetáculo de luz e sofrimento. O cachorro corria pela casa com seu corpinho ardendo em chamas, não tinha nada que ele podia fazer.
Bom, se não ficou claro pra você ainda, eu sou sádico. Eu não sabia disso até aquele domingo. E minha vida mudou para melhor. Aquele cachorro foi apenas o primeiro. Depois dele torturei e matei muitas aves, cachorros e gatos e até um cavalo. Eu tinha uma grande quantia de dinheiro guardada que eu não sabia para que usar. Comprei um pequeno sítio bastante afastado de tudo, que eu usava para levar animais e torturá-los. Além da vantagem de ser afastado, não era incomum aparecer animais no sítio já que ele ficava praticamente no meio da mata. Eu até aprendi a caçar para poder capturar animais da região que podiam ser usados para meu prazer. Disse aos meus colegas que me sentia bem em contato com a natureza e por isso comprei aquele sítio. Eles acreditavam e até invejavam minha bonita proximidade com a natureza. Eu continuei seguindo minha vida como antes, mas nunca trabalhara com tanto gosto, nunca tive tantos sorrisos. Meus colegas brincavam que eu estava apaixonado e de certa forma eles estavam certos. Eu me apaixonei pela vida, pois encontrei nela um sentido.
Mas dois anos depois de minha descoberta um sentimento de monotonia começou a tomar minha vida. Não que eu não me divertisse mais torturando aqueles animais, mas começou a ficar repetitivo, banal. Eu já sabia qual reação esperar depois de enfiar uma faca em qualquer lugar que fosse do corpo de um gato. Não sentia mais tanto prazer, parecia faltar algo. Foi quando comecei a cogitar ampliar as experiências. Me parecia cada vez mais fascinante pensar como seria torturar um outro tipo de animal, um ser humano.
Mas eu sabia que era muito perigoso. As pessoas não davam a mínima para animais, elas comem vacas e não estão nem aí. E pouco se importam com cachorros e gatos desde que não sejam seus cachorros e gatos e desde que eles não apareçam sendo torturados num vídeo do youtube. Pra ser sincero eu não gostava do sentimento de medo, da possibilidade de um detetive bater em minha porta perguntando sobre a morte de alguém. E com certeza isso nunca aconteceria enquanto eu continuasse matando animais não humanos. Mas eu precisava disso. Eu sentia até que podia morrer depois de fazer isso. E a ideia foi se maturando.
Depois de pesquisar bastante notícias de jornal descobri que era relativamente comum a tortura e assassinatos de mendigos para fins recreativos (afinal de contas eu não sou o único sádico do mundo), homens de rua sem nome e por quem ninguém se importava. Eram raros os casos em que o crime tinha punição. Em geral não havia nem investigação. A ideia pareceu boa e eu comecei a estudar o caso.
Durante alguns dias eu perdi horas andando pelas ruas da cidade atentando onde mais havia mendigos. Depois de semanas conclui que havia um beco isolado da cidade há pouco mais de um quilometro da ponte que dava para a região leste onde mendigos passavam suas noites. O bom deste lugar é que em geral só se encontravam no máximo três mendigos. Não teria muita tranquilidade se fosse num lugar cheio de mendigos, poderia ser perigoso.
Naquela noite resolvi executar meu plano. A ideia era torturar e assassinar o mendigo no próprio local. Se tivessem mais mendigos eu os mataria rápido, deixando sobrar apenas um com o qual eu poderia me divertir. Parecia um plano perfeito. Já se passava da meia noite quando estacionei meu carro próximo a ponte e fui caminhando até o beco. Eu sabia que não era muito seguro deixar o carro estacionado naquele local, àquela hora. No entanto, seria muito arriscado ir com o carro até o beco. Vejam bem, eu não sou um criminoso, mas tenho que pensar como tal se quiser satisfazer meus desejos. Era a parte que eu menos gostava, de ter que agir sorrateiramente, com cuidado para não ser pego, como um bandido. Eu queria que essa minha vontade fosse garantida pela constituição, embora eu compreendesse que havia motivos para que proibissem isso.
Eu fui andando rápido até o beco, já havia passado várias vezes por lá nas últimas semanas e embora nunca tivesse sofrido qualquer tipo de violência eu sabia que não era um lugar seguro, eu era exemplo disso. A rua que levava até o beco era escura e suja. Eu não dava a mínima. Eu estava determinado. Quando cheguei na boca do beco eu me dei conta de que havia esquecido os instrumentos que usaria para a diversão, uma enorme cagada! Percebi que estava bastante nervoso, mas ao mesmo tempo empolgado. Voltar e pegar a mochila era uma opção, mas pude ver neste momento que um dos dois mendigos que se encontravam naquele beco naquela noite havia percebido minha presença. Não havia tempo. Eu carregava sempre em meu bolso um canivete. Não era o melhor instrumento para se usar neste tipo de atividades, mas era o que eu tinha. E além do mais era um bom canivete. Um bom canivete azul que eu havia ganho de presente de meu vô. Meu avô era médico e lembrar disso na hora me pareceu irônico.
Como eu disse antes, a ideia era matar um mendigo e deixar o outro vivo para que eu pudesse torturar sem ser incomodado. Por isso eu fui em direção ao mendigo que notou minha presença, segurei-o de costas para mim e com o canivete eu cortei seu pescoço. Ele morreu bem rápido e eu me sujei um pouco de sangue. Aquilo me trouxe um enorme prazer, mas eu precisava de mais. Vi o outro mendigo caído no chão dormindo tranquilamente e por um momento achei que aquele meu canivete realmente não seria o suficiente para garantir toda a diversão, mas ainda assim decidi por não voltar, tinha medo de perder a oportunidade, que ele acordasse e fugisse. Teria que ser feito com o canivete. Era um bom canivete azul dado pelo meu vovô.
O mendigo estava dormindo e acordou com sua virilha sendo perfurada pelo canivete. Me deitei sobre ele e tampei sua boca enquanto enfiei a lâmina do canivete com certa delicadeza em sua virilha. Seus olhos de dor e terror! Oh, seus olhos, quanto prazer senti! Quando brincava com animais eu sempre tomava cuidado para evitar órgãos mais importantes ou artérias o que fatalmente reduziria o tempo de diversão, usei as mesmas técnicas com o mendigo e percebi que no final das contas não era tão diferente dos animais. Com a exceção de suas expressões, essas eram geniais e maravilhosas, muito melhor que nos outros animais. E quando eu o deixava falar? Suas súplicas, seu hálito de álcool implorando para que eu o matasse logo. Foi a melhor noite de minha vida. Não dei conta do tempo, passei a noite inteira torturando-o e quando percebi já começava a amanhecer. Junto com os primeiros raios de sol fui acometido de um enorme medo. Eu não estava sendo precavido. Era para eu ter voltado para o carro muito antes, mas não podia prever que teria tanta diversão.
Terminei com a vida do mendigo que já há algumas horas só se sustentava por um fio, foi um alívio para ele, claro. Não era como eu havia planejado. Em geral, eu não dou um último golpe de misericórdia, eu torturava até que os animais não aguentassem mais e morressem da própria tortura. Mas desta vez eu não tinha opção. Guardei o canivete e fui a passos rápidos em direção ao local onde havia estacionado o carro. Enquanto andava eu percebi que minha roupa estava toda molhada. Eu estava suado e todo molhado de sangue. Eu estava ofegante e cansado, a tortura havia tirado toda minha energia. Aquele quilometro até o carro me pareceu uma trilha sem fim. O sol ficava forte rápido e já se ouvia o barulho do movimento da manhã. Eu estava ferrado.
A luz do sol me evidenciava, parecia um zumbi que acabara de devorar sua vítima. Euqueria entrar no carro e voltar logo para casa. Todo o prazer que sentira aquela noite havia sido substituído por medo. Quando cheguei no estacionamento ao lado da ponte eu não pude ver o meu carro. Não poderia, ele não estava lá. Eu estava fodido! Entrei em desespero. Eu estava com muito medo. As ruas da cidade ainda estavam vazias, poucos haviam saído para o trabalho. Lembrei subitamente que dentro de uma hora eu também teria que estar saindo para o trabalho.
Foi quando vi que talvez Deus não me odiasse. Não, Deus me amava, pois ele me mostrou o sentido da vida e agora a salvava. Deus estava de acordo com minha vida, Ele só queria minha felicidade. Eu estava feliz e a partir deste dia me tornei um homem religioso. Um sádico religioso, pois Deus me mostrou que não havia contradição nisso. Eu estava livre a aliviado. Vi que meu carro na verdade estava parado no lugar onde o deixei, um milagre! Um minuto atrás ele não estava lá, eu tenho certeza disso. Entrei no carro e fui direto para casa. Se demorasse alguns minutos a mais encontraria as ruas entupidas de estúpidos trabalhadores indo ganhar seu pão.
Cheguei em casa sem problemas. Tomei um banho, me livrei das minhas roupas e me arrumei para o trabalho. Eu estava feliz! Cheguei adiantado na empresa. Fui até a máquina de café, lá estava João, um de meus colegas.
- Chegou mais cedo hoje.
- O tráfico ajudou – respondi.
- Você está muito bem, parece estar bastante feliz. Diga, quem você comeu esta noite? – disse rindo.
- Esta noite, João, eu conheci a Deus.







Gota



Uma densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de inexplicável força.
Nem bem deu tempo de Willianson se surpreender enquanto toda sua face era rasgada e descolada de sua cabeça, sendo sugada para dentro do vortex negro que se formara na folha de papel, deixando no lugar onde antes se encontrava seu rosto um buraco escuro onde se viam carne viva, veias e o crânio sob as camadas orgânicas que o revestiam.
- Os olhos... – começou a dizer sem entusiasmo Sra. Maury, funcionaria mais antiga da casa que cuidava dos aspectos domésticos e estava varrendo o fundo do enorme quarto de Willianson – eles continuam. Ficam, pois servem para ver, para que contemple o que foi de si e o que fica. – Maury falava sem se surpreender com o que acontecera, sem sequer parar de varrer o pó.
Os olhos de Willianson estavam pendurados pelo nervo ótico que se juntava ao buraco de onde fora arrancada sua face. E contemplavam com tristeza o reflexo na janela do quarto, o reflexo do que se tornara.
- Não é bonito – era o jardineiro, Sr. Maxwine, que apareceu na janela do quarto, de repente – mas é o que te sobrou de bom. Caiu-te a face, e até que sobras um tanto de bom. És, tirando o que se mostra ser, um bom homem.
Willianson se mostrava agoniado, não conseguia falar, mas emitia um grunhido de comovente desespero. Pelo corredor que dava no quarto apareceu correndo Sra. Bovaly. Era baixa e gorda, uma mulher simples e grosseira, mas eficiente camareira. Ela entrou no quarto e com um sorrisinho maldoso contemplou o desespero de seu patrão.
Guilhary, o porteiro da casa, veio atrás pelo mesmo corredor, mas, ao contrário do sadismo de Bovaly e da indiferença de Maury e Maxwine, mostrava preocupação e tristeza com a condição do “chefinho”, como carinhosamente chamava Willianson. Ao se dirigir ao quarto do patrão, Guilhary deixara o portão da casa aberto e sem proteção. Não demorou para curiosos, vindo de toda a pequena cidade, se espremerem no corredor e no quarto para terem uma visão da desgraça de Willianson.
Alguns riam, outros se impressionavam, as crianças acompanhadas de seus pais choravam diante do macabro espetáculo. A mancha preta que já cobria quase todo o papel começou se avolumar, projetando-se para fora do papel e começou a girar como um redemoinho. Um grito agudo veio, de súbito, de uma das primeiras expectadoras da massa de curiosas. Era Bovary. Um buraco abrira bem no meio de sua barriga e suas tripas foram sugadas para dentro da mancha preta que agora já tinha tomado todo o papel e passava a se espalhar pela escrivaninha. Junto com as tripas vieram atrás toda massa de gordura, deixando Bovary caída no chão, como um balão estourado, urrando de dor. Dentro de sua carcaça batia ainda um enorme coração, encapado por uma grande massa de banha. O coração parecia lutar para dar cada batida sob a pressão da jaula de gordura que o revestia. Não mais.
O coração parou de bater e foi sugado para dentro da mancha peta que já cobria toda a escrivaninha e começava a se projetar para as paredes do quarto. A esta altura, Willianson, todos os curiosos e os funcionários da casatinham saído do quarto e se concentravam no quintal que dava para a janela do cômodo. Alguns mais curiosos se debruçavam no parapeito da janela para observar melhor o que acontecia no quarto.
O Padre Jonas, que também se encontrava no quintal, pronunciou em tom de sermão:
- É tudo uma metáfora divina. A mancha representa a maldade quedentro de nós! O coração da mulher deu poder a mancha, pois estava impregnado de pecados, era um coração distante de Deus! Os bons de coração serão salvos! – o padre foi quem tomou a maior distância da mancha entre todos os curiosos.
Em pouco tempo a mancha já havia tomado a casa toda e os curiosos, agora muito mais desesperados fugitivos do que curiosos, se distanciavam dela como podiam. Foram sendo sugados um a um. E cada qual de forma peculiar. O cientista, por exemplo, teve seu cérebro arrancado violentamente de sua cabeça. Ele fazia pesquisas para laboratórios de remédios da capital, a pequena e provinciana cidade era um laboratório ideal.
O padre correu como pôde, mas teve sua língua arrancada. Se sentiu aliviado, no entanto, com a esperança de que seria só aquilo. Mas não demorou até ser devorado por inteiro pela mancha.
Alguns resistiram por muito tempo e até imunes. O banqueiro e o dono da mina de carvão sobreviveram por muito tempo. Pareciam imunes a mancham, mas só eram muito pesados, isto é, continham muita mancha preta. Foi quando foram finalmente sugados que a mancha tomou proporções continentais. E cresceu em progressão geométrica até tomar todo o globo e depois se dissipar no espaço.
Alguns sobraram. Inclusive Willianson, sem seu rosto. Sobraram padres também, embora todos os bispos tenham sido sugados. Sobraram gente de todas as partes, de todos os tipos, ainda que poucos e mutilados. Era difícil de se imaginar que a Terra sobreviveria à tragédia, pois uma das condições primeiras para se retomar a vida é a reprodução e poucos mantiveram seus órgãos genitais.
.......

Professor Willianson lecionou história da religião na universidade da capital por muitos anos, no final do século XIX. Antes disso era um pobre garoto, filho de pais pobres na pequena cidade onde voltou a viver depois de sua aposentadoria. Seus pais se sacrificaram muito para que ele pudesse ter estudos. Um dia finalmente conseguiram dar ao seu filho o que nunca seque puderam sonhar, Willianson foi estudar na grande universidade da capital. Universidade aristocrática, onde só nobres e filhos de grandes burgueses estudavam. No entanto, Willianson era brilhante e se consolidou como uma prodigiosa exceção.
Até se tornar um deles.  Foi um processo lento e doloroso. Willianson foi negando os ensinamentos de seus pais, ignorando a humildade que caracterizava os simples camponeses da pequena cidade e que era tão estranha no centro acadêmico da capital da qual agora ele fazia parte.
Willianson chegou ao cargo máximo, reitor da universidade da capital. Mas o sucesso teve seus custos. Não só negou aos ensinamentos de seus pais, mas negou seus próprios pais. Quando informado pelo seu secretário pessoal que sua mãe estava adoecendo na cama de sua antiga casa, pediu um momento, foi ao banheiro e deixou cair uma lágrima. Limpou-a, saiu do banheiro e pediu para que o secretario cuidasse para que nunca chegasse ao público qualquer notícia de seus pais. Eles morreram e ele não deu seu adeus.
Willianson foi um dos mais importantes nomes que a universidade da capital teve em sua história. Alcançou o ponto máximo de sua carreira. Ele havia se aposentado semana passada, e há duas mudou para a pequena cidade onde nascera. Comprou a maior mansão da cidade.
Sentou na cadeira de seu quarto diante de sua escrivaninha. Pegou uma folha branca de papel de carta na segunda gaveta. Pegou uma caneta e começou a escrever sua carta de suicídio. Uma tristeza lhe tomou a alma e uma lágrima lhe escorreu no rosto indo em direção ao papel branco. Uma densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de inexplicável força.





quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Chapéu (Parte I)



Você já foi dormir para encontrar alguma coisa? Para buscar nos sonhos aquilo que você não vê com os olhos abertos? Toda noite vejo aquele homem sem rosto que segura um guarda-chuva na mão esquerda e espera no metrô vagões que passam vazios. Quando me aproximo ele acena com a mão esquerda para que eu o siga. Por mais que eu corra não alcanço o vagão no qual ele entra. Ele pula para dentro deoxando cair seu chapéu preto – ele não tinha um chapéu preto. No início do sonho, enquanto eu o observo de longe, parado diante dos vagões que passam, ele não usa um chapéu, acho. Este detalhe me foge a cada e toda noite, isto é, se ele o usa o chapéu o tempo todo ou apenas quando pula para o vagão deixando-o cair. Há vezes que, num atlético movimento de desespero, eu tento pular para dentro do vagão, mas nunca dá tempo, eu acabo caindo nos trilhos e então acordo. Mas quase sempre eu fico diante da plataforma e vejo o vagão se distanciar com o homem misterioso. Pego o chapéu caído no chão e examino. Na parte interna há um pequeno texto inscrito em letras douradas: “Preciso de sua ajuda, acredito poder confiar em você, mas mais do que isso, você tem o potencial necessário. Me encontre em...”. Droga! Às vezes acordo neste momento... Cada vez mais meu sonho tem acabado neste momento, embora às vez vezes ele prossiga...
Você tem controle de suas ações em um sonho ou é apenas uma espécie de gravação que você assiste impotente com a perturbadora sensação de que está participando da cadeia de fatos? Embora já tivesse amanhecido voltei a dormir, mas não consegui voltar ao sonho. Acordei umas suas horas mais tarde. Eu não tenho exatamente algo importante para fazer nesta quarta-feira, estou desempregado. Mas tudo bem, afinal dinheiro não é tudo... Brincadeira, eu sou pateticamente sustentado pelo meu pai. Apesar de que depender do dinheiro do pai aos 32 anos me deixa um pouco chateado, fere um pouco de meu orgulho, a despeito disso, eu, ao menos, não sinto pena do dinheiro dele. É uma boa ação, todo aquele dinheiro não cabe em seu bolso, então eu pego uma parte do que transborda. A verdade é que eu podia pegar bem mais, mas apenas aceitava o necessário. Levando em conta o berço de ouro em que nasci, vivo humildemente, no geral como um proletário médio das grandes metrópoles. Com a exceção de que não trabalho e que como e bebo muito bem para um proletário das metrópoles.
Eu devia procurar emprego para resolver o problema da auto-estima. Mas já é quase meio-dia, muito tarde para procurar um emprego, talvez fique para amanhã. Está frio e, como já disse, nada de especial me convida para levantar. Deixei o corpo do meu corpo cair na cama, virei de lado e quase voltei a dormir. O telefone. Eu gosto de telefone, da idéia de se ter um telefone e de todas as comodidades que ele proporciona, de fato, sou um grande entusiasta do progresso humano. Mas eu odeio quando ele toca. Odeio como ele grita impaciente obrigando você a antendê-lo. Filho da puta histérico! Isso me matava. Cortei o sofrimento:
“Alô”, eu disse.
“Alô...”, me respondeu uma voz impaciente, vagamente familiar.
...
“Hã, quem é?”
“Escuta, é a última vez que ligo. Você marcou consulta para às duas. Desta vez você vem?”. Caramba. Ela estava mesmo irritada. Mas agora que reconheci a voz e entendi do que se trata eu posso dizer, tinha um pouco de culpa mesmo. Faz uns três meses que comecei a sentir uma terrível dor aguda nos meus... bom, eu esperei um tempo, e depois mais um pouco, para ver se passava, mas como não passou eu marquei uma consulta com um urologista. Que coisa horrível, um urologista... Acontece que eu marquei a consulta três vezes e, sem avisar, não apareci nas duas primeiras e a terceira é hoje, como a secretária acaba de me lembrar agora. Acho que ela estava desistindo de mim, então hoje eu vou, prometo. Acho...
“Ah, sim, desculpa. Mas é claro, às duas horas, né? Pode confirmar!”
“Certo Monteiro... está, mais uma vez, confirmado...”
“Hã, certo... Obrigado, até às duas!”, e ela desligou. Na minha cara. Mas eu merecia.
Pensando melhor, acho que não vou. Ainda dói, é verdade. Mas você acaba se acostumando a viver com a dor. Você se adapta. Não é que eu tenha medo de ir ao médico, eu não tenho. Mas não é legal quando mexem nas suas “coisas”, sobretudo, se elas estão doendo. De repente o telefone começou a me encarar e eu fiquei pensando em como ele ficará irritado e o quanto ele gritará histericamente quando passar das duas horas e mais uma vez, sem justificativa, eu não comparecer ao maldito compromisso. Nada é mais desagradável que quando o telefone fica muito, muito bravo com você. É triste, essas coisas me deixam muito triste. Eu vou.
Vesti-me rápido. Nem tomei banho, estava frio e meu cabelo razoável. Saí de casa e fui em direção ao consultório. Dá para ir a pé em menos de 30 minutos. Eu sabia que rua tinha que pegar, embora nunca tivesse passado por lá. É uma cidade enorme, mas eu a conheço muito bem, me viro bem, sobretudo com o metrô. Eu adoro o modo como você anda incógnito nessas metrópoles. Ninguém julga o que você veste, para onde vai e porque, ninguém está nem aí. Ora, seria meio constrangedor se me olhassem e dissessem “olha lá o Monteiro indo ao urologista, seus genitais estão apodrecendo, também pudera, com a vida que leva...”. Pra falar a verdade eu temia que, no entanto, o médico me julgasse, aquele estúpido julgamento profissional – uma espécie de julgamento perito de mãe.  Eu mesmo me julgo, me pergunto de onde surgiu essa dor. Dois dias antes de ela começar eu meio que paguei pelos serviços de uma não, mais duas putas. Quando você sai com duas putas você perde o controle da higiene e coloca até sua saúde em risco, eu sabia que era estupidez, mas eu sou um estúpido, admito. Não havia sido a primeira vez e apesar de tudo eu não tinha nenhum problema moral ou ético comigo mesmo em relação a isso. Mas não faço questão que as outras pessoas saibam. Não quero a aprovação de ninguém, mas também dispenso a reprovação.
Eu já estava mais da metade do caminho quando parei diante da vitrine de uma pequena loja. Uma loja que vendia chapéus e eis que lá estava o chapéu. Isso mesmo, o chapéu. É óbvio que entrei. Um velho, gordo, gordo mesmo, um barril, com barba de bigode brancos e trajando uma roupa que, de repente, me fez perguntar se eu tinha voltado para o século XIX, falou sob sua cartola:
“Pois não, senhor?”, eu estava um tanto distraído, às vezes fico distante o que irrita as pessoas. A imagem do velho gordo com aquela enorme cartola despertou uma infantil curiosidade em mim. Você vê todos dias uns tipos estranhos nas ruas quando mora em uma metrópole, mas nunca tinha visto um homem do século XIX. Enquanto eu pensava sobre se era mesmo um homem do século XIX – estava quase convencido de que se tratava de um daqueles industriais muito ricos e maldosos do século XIX – o homem voltou a perguntar com uma surpreendentemente calma (tendo em vista que era um homem de aparência grosseira e maldosa):
“Senhor? Pois não? No que posso ajudar?”
“Ah, oi! Desculpa. O senhor vem do passado? Digo, do século XIX?”, e eis que fazia uma das perguntas mais idiotas entre todas as perguntas extremamente idiotas que já fiz em toda minha vida.
“Pois não?”, ele voltou a perguntar com cara de quem não havia entendido minha pergunta. Menos mal. Comecei a me indagar se o vocabulário dele tinha outras palavras além de “pois não?”. Podia ser um robô programado para ser um vendedor de chapéus do século XIX.
“Eu me interessei por um chapéu que está na vitrine” e apontei para ele, o chapéu. É exatamente igual o chapéu que via nos meus sonhos. Não, não é somente igual, é ele.
“Ah, ora... Ora... Perdão senhor, mil perdões!”, se desculpou o velho muito perturbado.
“Infelizmente... infelizmente, muito triste... infelizmente o chapéu já está vendido para um outro senhor... esqueci de tirá-lo da vitrine... Oh, sim esqueci... Mil perdões, mil perdões, falta terrível!”, já são pelo menos três mil perdões, e de onde eu venho tudo é mercadoria, inclusive perdões. Eu não engoli. Não consegui imaginar alguém comprando um chapéu para levar só depois. Em outra hipótese ainda mais remota, ninguém liga para uma chapelaria e diz “ontem passei com pressa pra sua loja e vi um incrível chapéu, aquele que aparece nos sonhos do senhor Monteiro, gostaria que você, por favor, o reservasse, pois vou buscá-lo amanhã.” Isso não existe.
De repente começo ter a nítida impressão de que estou fazendo parte de uma conspiração e a resposta, sem dúvida, estava naquele chapéu que eu estava sendo impedido de comprar. Fingi lamentar “uma pena, o chapéu ficaria excelente em mim, combinaria com minha calça jeans...”. Mentira, é claro, afinal ao sair daquela loja eu estaria de volta ao século XXI e usar aquele chapéu seria ridículo. Virei como se fosse sair da loja e, em um rápido movimento provido de extrema habilidade, peguei o chapéu e saí correndo como um leopardo. O velho gordo saiu de traz do balcão com uma inacreditável destreza e da porta de seu estabelecimento gritou “Ladrão! Pega ladrão!”.
Não nasci sequer para roubar chapéus do século XIX. Há uma quadra da loja pude ver uma viatura da polícia. Correr foi completamente inútil. Se eu continuar fugindo vou levar um tiro, então resolvi me entregar.
“Desculpa seu guarda, roubei este chapéu, mas juro que tentei pagar por ele.”
Um dos policiais me algemou (eram dois), me jogou na viatura com desnecessária violência e se dirigiu junto com o vendedor gordo e sua monumental cartola (que teve que ser carregada no colo, pois não cabia dentro do carro) ao distrito policial. Nem disse que eu tinha  direito de ficar calado. Mas eu julguei que era melhor não falar nada. Eu já tinha feito algumas merdas na vida, mas agora estou sendo preso... por roubar uma porcaria de chapéu. Parece meio ridículo, mas estou um pouco entusiasmado e claro, com um pouco de medo. Mas pra quem se dirigia a um urologista para ter suas coisas mexidas, terminar algemado numa viatura de polícia é algo emocionante.
Nada de interessante aconteceu nos próximos quarenta e pouco minutos. Cheguei no distrito e fiquei esperando um tempão até que Santiago, o delegado encarregado me chamou para sua sala. Ele já tinha ouvido o chapeleiro e o policial que tinha me prendido. “Em flagrante”.
“Você foi pego em flagrante”, começou o homem. Ele parecia tratar o assunto sem muito entusiasmo. Caramba, estou cagando nas calças e o delegado tratando aquilo como se fosse...
“Um furto de chapéu... Veja bem João Monteiro Salgado, já foram 3 homicídios, dois casos de estupro e algumas agressões físicas graves, só hoje... então, embora você tenha garantido por lei o direito de esperar seu advogado, podemos combinar o seguinte. Você me dá um breve depoimento e está livre, caso encerrado...”. Ele parou de falar e olhou para mim, eu não respondi nada, então ele continuou.
“Já conversei com o chapeleiro e com o policial, o primeiro me disse que você tentou comprar o chapéu que, no entanto, já estaria vendido. O policial aceitou relevar sua tentativa de fuga, então todos ganharão se deixarmos nisso mesmo, de acordo?”
Eu estou tão nervoso que nem sei o que dizer, mas a proposta me pareceu safistatória, no entanto, quando estou nervoso falo besteira...
“O chapeleiro está envolvido em uma conspiração”, se eu tivesse respondido “tudo bem, onde assino?” eu já estaria indo embora...
“Uma conspiração?”, o ar de tranqüilidade do delegado mudou abruptamente. Mas não parece ter levado a sério, na verdade ele ficou irritado, porque já eram quase três da tarde e ele nem tinha almoçado ainda.
“Olha senhor...”, ele pegou a ficha para relembrar meu nome, embora eu tenha certeza que só é parte de uma encenação para me diminuir perante sua reivindicada autoridade “... Monteiro. Eu realmente não estou aqui para brincar. Isso não é uma brincadeira, você acabou de cometer um assalto, foi pego em flagrante... eu quero almoçar e você quer ir pra casa, então vamos fingir que você não falou a palavra ‘conspiração’ aqui, ok?”
Ele me deu uma segunda chance e desta vez eu estava um pouco mais tranqüilo, então diante da corrupção policial que se projetava covardemente sobre meu triturado senso se justiça, aceitei assinar os papéis e voltar para casa. Era um caso para ser resolvido sozinho.
Já são mais de três horas, fui descendo a escadaria da delegacia sem olhar para trás. Estava um dia muito bonito, a temperatura muito agradável. Embora o metrô fosse o meio mais rápido para chegar em casa resolvi ir a pé, tentando colocar em ordem os acontecimentos extraordinários daquele dia. Embora minha vontade seja voltar à chapelaria e mais uma vez tentar tomar posse daquele chapéu, não seria uma boa idéia hoje, quando tinha acabado de ser preso por essa mesma tentativa frustrada. Então simplesmente fui andando, me levando automaticamente pelas ruas até chegar em minha casa, um apartamento de quatro cômodos no quarto andar daquele cinzento prédio residencial que permanecia vivo, sozinho, naquele bairro tomado pelo comércio. Era um bom lugar, mas meio barulhento. Eu não ligava pro barulho, dormia bem e dormia pra caramba.
Foi uma boa caminhada, não consegui colocar os pensamentos em ordem, mas eles ao menos ficaram fresco em minha mente quando cheguei em casa um pouco antes das cinco, tirei meus tênis e me joguei na cama. Não estou planejando dormir, apenas descansar minhas pernas, mas o sono veio mesmo assim. Há alguns metros de mim o homem sem rosto na plataforma de embarque do metrô, os vagões passando vazios em sua frente, ele acena para mim...
 (Continua...)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pulei, mas não caí




Não é que estou desesperado, não é que o mundo está de cabeça para baixo, não são os problemas. Os problemas suscitam soluções, sob o caos repousa a esperança de dias melhores. Mas é que não tenho problemas, é justamente em função disto. Mormaço. Está tudo tão em seu lugar e meu lugar não é aqui. Desafiei o mundo durante toda minha vida e sempre fui vencido. O mundo me venceu, eu fracassei e fracassando percebi meu lugar – outro lugar.
Então, é justo nessa tarde de segunda – exatamente aquela tão distante de alguma tarde que poderia ter, por sua natureza, por seu lugar relativo aos outros dias do calendário, algum significado – que eu desisti. Para o alívio e a felicidade de todos que tiveram o desprazer de presenciar, de algum modo, minha fracassada tentativa de viver, eu desisti. Cheguei meio bêbado em casa, cambaleando as razões pelas quais sempre bebi, isto é, tentar ser algo que nunca fui. O álcool sempre foi muito simples em minha vida, eu bebo para engolir, para engolir a mim mesmo, aos outros, a minha vida. E, não à toa, meu estômago sempre foi fraco, minhas tentativas de digerir meu miserável cotidiano sempre acabaram no vaso sanitário.
Não por acaso me casei com a solidão. Não se sintam tristes por mim, nossa sociedade superestima os malefícios de se viver sozinho. Confesso, no entanto, já cambaleei, já ajoelhei sob os pés da vida, mas ela cuspiu em minha cara, graças a Deus. Mas não acredito Nele; morrer, se deixar morrer, ter papel predominante em sua própria morte, não tem necessariamente e, na verdade, raramente tem alguma relação com a suposta vida após a morte; diz respeito ao agora e ao nunca mais. Mas, enfim, embora já tenha fraquejado, eu persisti em meu único princípio de vida – não ter princípios, confrontar os princípios, desafiar o mundo. É por isso que nunca casei, nunca me entreguei resignado, ao lado de uma cúmplice, aos grilhões da escravidão os quais o mundo em sua cínica conveniência chamou de viver.
Mas ser um contestador, ainda que se apresente a mim como a única alternativa possível, é escuro e silencioso. Meu apartamento não tinha nada que me convidasse a voltar da rua, mas já experimentou dormir na sarjeta? Não cheguei em casa decidido, mas não foi uma decisão imediata que tomei enquanto olhava a vista da sacada do oitavo andar, o vento que toca minha face enrugada (precocemente)... e como seria poético se balançasse meus cabelos que, no entanto, o mundo, pois é, resolveu levar... Não foi fruto de nada disso. A decisão foi se desenvolvendo à luz ( na verdade à falta dela) dos anos, durante cada segundo mal vivido que sonhavam, embora temessem, o dia em que simplesmente deixariam de ser vividos.
Meu desafio final, enfim vencerei o mundo. “Ainda que esteja morto viverá”, bom, talvez não, mas a morte é minha, é o modo final de olhar para o mundo e dizer-lhe triunfante, depois de tanto dele ter apanhado: “Tchau, cretino!”. Joguei-me enquanto, num microssegundo, que precedeu o início de minha queda, me deparei com um dilema que, agora, pensando bem, deve ser clássico aos mortos voluntários. Pensei sobre o caráter de minha decisão, seria ela uma demonstração de coragem ou de covardia? Em um relance poético sentenciei: “Covardia corajosa!”. Coragem covarde? Nada disso. Pulei, mas não caí.
Uma fábula surge em minha cabeça. Ela é recorrente em minha vida, como um pesadelo que martela em minha mente, todos os dias, durante anos, só que ela aparece diante de mim quando estou acordado. Fui eu quem criou, do nada – como num sonho. Nela eu sou um cão – e acaba aqui o que há de positivo na fábula. Estou farejando algo ao longo de um labirinto. Mas não farejo um odor, farejo uma idéia – não sei qual. Quanto mais intensa e densa a idéia que farejo, mais para dentro do labirinto estou e, portanto, mais perdido. Quando sei que estou muito perto dela, de repente não sou mais um cachorro. Sou um humano, sou eu mesmo. Perdido e sem faro. Daí em diante vago perdido pelo labirinto, sem saber se em busca de uma idéia a qual não me resta nem um remoto traço da época em que ainda gozava dos talentos caninos, ou se da saída a qual quanto mais procuro mais distante estou. E, assim, vivi infeliz para sempre...
Não sei ao certo porque esta fábula me veio neste momento, o fato é que pulei, mas não caí. Não posso dizer com precisão o que me acabou de acontecer, na verdade desconfio da dos fatos que se sucedem, embora os testemunhe. Pulei da sacada e ao invés de cair eu subi. Não como um balão de hélio; o mundo virou de ponta cabeça e, em um primeiro momento, eu andava no céu como se este fosse um chão sólido e, acima da minha cabeça, estava o chão, agora céu. Mas foi assim só por um momento, em seguida o céu voltou para cima da minha cabeça e o chão estava sob meus pés – eu estava intacto, pisando a calçada em frente ao meu prédio. As pessoas andam alheias, os carros seguem seus caminhos ignorando o que acabou de acontecer.
Não obstante o fato fantástico que acabara de se suceder, embora a o mundo tivesse dado uma volta ao redor de mim, algo permaneceu igual. Desafiei o mundo e fui vencido. Tentei desfrutar do único aspecto de minha vida que cria dominar, mas, oras, não caí! “E por quê?” gritei, em súplica, com os braços voltados para os céus, em uma cena cinematograficamente ridícula. Como o silêncio me respondeu, segundo o esperado, nada, resolvi, num lúcido (se considerarmos as circunstâncias) acesso de insanidade (se levarmos em conta a literatura psiquiátrica), eu mesmo responder. Mas não era exatamente eu... ok, o diálogo acabou de tender fortemente para o lado da loucura. “Porque escolheu um adversário muito grande para vencer sozinho. E ao mesmo tempo não tem o apoio de uma sombra sequer. Cuspiu em todos os princípios da guerra, quis o mundo sem nem ao menos ter controle de si próprio. És um fracasso em si mesmo, qualquer tentativa de conquistar qualquer aspecto da vida se traduz na exteriorização de seu fracasso interno...” e continuaria me ofendendo ad infinitum se eu não interrompesse. Parece, de certo modo, um diálogo com minha baixo alto-estima, ou a visão crítica sobre mim mesmo (latente e escondida em algum canto de meu subconsciente), que são, na verdade, as mesmas coisas. Mas não era. De fato alguma força exterior tomou conta de meu corpo e, assim, construía um diálogo comigo mesmo.
“O que eu podia fazer?” respondi em tom de alto-piedade. “Não nasci para aceitar a pressão do mundo. O que poderia fazer se não tenho os meios para mudá-lo? Aceitar? Nasci com a peça da resignação faltando...” no que a ‘entidade’ retrucou: “Nasceu sem quase nada, na verdade. Caso a construção da vida fosse uma linha de montagem, você seria um refugo, um produto estragado que fugiu aos olhos do controle de qualidade. Mas não é este o problema... nascem pessoas erradas todos os dias...” “Mas a maioria delas passa pelo mundo sem serem percebidas”, interrompi triunfante, crendo em minha superioridade revolucionária. “...Mas és uma fraude. És o protótipo da fraude. Veste Napoleão, Marx e Gandhi, mas és oco; tens a roupa, mas lhe falta aquilo a que ela veste. Quando a fortuna lhe bate a porta, te falta virtú.” Eu não consigo acreditar: “Está sendo injusto... a sorte só conheço de nome. O mundo sempre me negou oportunidades, sempre contrariou meu projeto...”. “Vejo que as palavras se esgotarão sem preencher a nada. Vou tentar fazê-lo entender de outro modo. Ande, faça o caminho daqui até o parque central; esta caminhada, acredito, mudará sua vida”.
São cinco ou seis quarteirões de meu prédio até o parque central. Embora cético quanto à possibilidade daquela caminhada “mudar minha vida”, comecei a andar. As previsíveis ruas noturnas dessa cidade expõem seus tantos transeuntes que desfilam a sujeira que os respeitáveis cidadãos sempre escondem do público, guardando entre quatro paredes, com um efeito de hipocrisia moral. Em um caso ou no outro, o resultado final é mediocridade.
“Seu grande problema. Talvez o pior dos seus inimigos, aquele a quem nunca sequer ousou enfrentar... mas continua andando, não creio que esteja pronto para aceitar”. Diante daquelas palavras, continuei meu caminho, jogando meus olhos críticos a cada detalhe que me cerca. Há menos de meio quarteirão está aquele bar iluminando a esquina com as trevas espirituais dos alcoolizados que, diferente de mim, bebem para celebrar a decadência humana. A mesma humanidade que, tão logo se fez existir, desce as escadas rumo ao precipício sem fim da vida. Já em frente do bar, falei comigo, quero dizer, falaram comigo através de mim: “Te vejo sentado no bar compartilhando suas frustrações tão menos únicas quanto você faz parecer em suas observações idiotas sobre os bêbados quase a caírem no chão”. Não respondi, não entendi bem o que quis dizer, ele... eu... enfim. Mas aquelas palavras entraram de um jeito curioso em minha cabeça, a serem digeridas pela reflexão de meu raro discernimento racional. Para calar o constrangedor silêncio, continuei andando. Já estou próximo do parque central e, no entanto, minha vida ainda não havia mudado para sempre... Lá está Mucoco, o vira-lata preto e cinza, sujo e fedorento, deitado em frente à fachada daquela padaria. Isso quer dizer que já passam das quatro. Sempre uma hora antes das cinco, que é a hora que a padaria abre, o cão espera por um pedaço pão, que sempre recebia do bondoso, embora burríssimo, padeiro. Passar por lá àquela hora significava uma oportunidade de eu lembrar como os cães são superiores aos humanos – sinceros e belos, roem o mundo e sobrevivem a ele o enfrentado. “Certo” – começou aquela voz – “agora você está delirando. Você admira os cachorros sobretudo porque são incapazes de reconhecer a si próprios. Mas o que neles é incapacidade, em você é fraqueza, é covardia”. “O que exatamente quer dizer com isso?”. “Ainda não. Chegue ao parque, está quase entendendo, acho. Mas antes chegue ao parque.”
O parque estava fechado, ele abre às seis horas. “Devo esperar?”. “Já esperou demais. Leia a placa”. O portão metálico tinha uma placa parafusada a ele. Nunca havia lido nada além das palavras em destaque, escritas em letras maiúsculas: “FECHADO”, mas havia um texto interessante o qual nunca reparei, lê-se: “Horário de funcionamento: das 6h às 20h”, mas não é esta a parte interessante, o texto segue: “O Parque Central não funciona durante a noite. Por favor, pedimos sua compreensão, os animais precisam descansar. As regras têm sentido, As regras se baseiam nos hábitos dos animais. As regras são naturais.”. Estava a contrariar a mim mesmo, a desconfiar de minhas convicções, passo a estranhar a mim mesmo...
A voz então começou: “Não que eu tenha que lhe dar satisfação, mas me preocupo com sua incredulidade, com sua teimosia doentia... este é o primeiro ponto. O segundo ponto... você já se deu conta? Sobre o quão comum tu és? Que você mesmo, tanto quanto aqueles que te rodeiam, é um medíocre. Encare isso, você é medíocre. Percebe a mediocridade em cada esquina, em cada bar, igreja, padaria ou escola, mas não percebe aquela que lhe está mais próxima, sua própria mediocridade. Aquilo que te limita, aquilo que está entre suas ambições e o mundo – você.”
Não precisei responder, tremi diante da realidade e meu semblante traduziu que eu acabara de digerir as coisas que sobre mim se jogaram ao curso de minha vida, mas, sobretudo, digerira a mim mesmo e só assim pude entender, mais ou menos, o mundo e a vida sob os olhos de uma pessoa que renasce justamente através das bases as quais sempre tentei derrubar – as da resignação, mas agora sobre uma nova visão: aceitação da realidade.
“Agora já pode cair.”.
Caí, morri, venci e perdi – vivi.