Uma
densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos
por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para
escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha,
invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se
dotou de uma sucção de inexplicável força.
Nem
bem deu tempo de Willianson se surpreender enquanto toda sua face era rasgada e
descolada de sua cabeça, sendo sugada para dentro do vortex negro que se
formara na folha de papel, deixando no lugar onde antes se encontrava seu rosto
um buraco escuro onde se viam carne viva, veias e o crânio sob as camadas
orgânicas que o revestiam.
-
Os olhos... – começou a dizer sem entusiasmo Sra. Maury, funcionaria mais antiga
da casa que cuidava dos aspectos domésticos e estava varrendo o fundo do enorme
quarto de Willianson – eles continuam. Ficam, pois servem para ver, para que
contemple o que foi de si e o que fica. – Maury falava sem se surpreender com o
que acontecera, sem sequer parar de varrer o pó.
Os
olhos de Willianson estavam pendurados pelo nervo ótico que se juntava ao
buraco de onde fora arrancada sua face. E contemplavam com tristeza o reflexo
na janela do quarto, o reflexo do que se tornara.
-
Não é bonito – era o jardineiro, Sr. Maxwine, que apareceu na janela do quarto,
de repente – mas é o que te sobrou de bom. Caiu-te a face, e até que sobras um
tanto de bom. És, tirando o que se mostra ser, um bom homem.
Willianson
se mostrava agoniado, não conseguia falar, mas emitia um grunhido de comovente
desespero. Pelo corredor que dava no quarto apareceu correndo Sra. Bovaly. Era
baixa e gorda, uma mulher simples e grosseira, mas eficiente camareira. Ela
entrou no quarto e com um sorrisinho maldoso contemplou o desespero de seu
patrão.
Guilhary,
o porteiro da casa, veio atrás pelo mesmo corredor, mas, ao contrário do
sadismo de Bovaly e da indiferença de Maury e Maxwine, mostrava preocupação e
tristeza com a condição do “chefinho”, como carinhosamente chamava Willianson.
Ao se dirigir ao quarto do patrão, Guilhary deixara o portão da casa aberto e
sem proteção. Não demorou para curiosos, vindo de toda a pequena cidade, se
espremerem no corredor e no quarto para terem uma visão da desgraça de
Willianson.
Alguns
riam, outros se impressionavam, as crianças acompanhadas de seus pais choravam
diante do macabro espetáculo. A mancha preta que já cobria quase todo o papel
começou se avolumar, projetando-se para fora do papel e começou a girar como um
redemoinho. Um grito agudo veio, de súbito, de uma das primeiras expectadoras da
massa de curiosas. Era Bovary. Um buraco abrira bem no meio de sua barriga e
suas tripas foram sugadas para dentro da mancha preta que agora já tinha tomado
todo o papel e passava a se espalhar pela escrivaninha. Junto com as tripas
vieram atrás toda massa de gordura, deixando Bovary caída no chão, como um
balão estourado, urrando de dor. Dentro de sua carcaça batia ainda um enorme
coração, encapado por uma grande massa de banha. O coração parecia lutar para
dar cada batida sob a pressão da jaula de gordura que o revestia. Não mais.
O
coração parou de bater e foi sugado para dentro da mancha peta que já cobria
toda a escrivaninha e começava a se projetar para as paredes do quarto. A esta
altura, Willianson, todos os curiosos e os funcionários da casa já tinham saído
do quarto e se concentravam no quintal que dava para a janela do cômodo. Alguns
mais curiosos se debruçavam no parapeito da janela para observar melhor o que
acontecia no quarto.
O
Padre Jonas, que também se encontrava no quintal, pronunciou em tom de sermão:
-
É tudo uma metáfora divina. A mancha representa a maldade que há dentro de nós!
O coração da mulher deu poder a mancha, pois estava impregnado de pecados, era
um coração distante de Deus! Os bons de coração serão salvos! – o padre foi
quem tomou a maior distância da mancha entre todos os curiosos.
Em
pouco tempo a mancha já havia tomado a casa toda e os curiosos, agora muito
mais desesperados fugitivos do que curiosos, se distanciavam dela como podiam.
Foram sendo sugados um a um. E cada qual de forma peculiar. O cientista, por
exemplo, teve seu cérebro arrancado violentamente de sua cabeça. Ele fazia
pesquisas para laboratórios de remédios da capital, a pequena e provinciana
cidade era um laboratório ideal.
O
padre correu como pôde, mas teve sua língua arrancada. Se sentiu aliviado, no
entanto, com a esperança de que seria só aquilo. Mas não demorou até ser
devorado por inteiro pela mancha.
Alguns
resistiram por muito tempo e até imunes. O banqueiro e o dono da mina de carvão
sobreviveram por muito tempo. Pareciam imunes a mancham, mas só eram muito
pesados, isto é, continham muita mancha preta. Foi quando foram finalmente
sugados que a mancha tomou proporções continentais. E cresceu em progressão
geométrica até tomar todo o globo e depois se dissipar no espaço.
Alguns
sobraram. Inclusive Willianson, sem seu rosto. Sobraram padres também, embora
todos os bispos tenham sido sugados. Sobraram gente de todas as partes, de
todos os tipos, ainda que poucos e mutilados. Era difícil de se imaginar que a
Terra sobreviveria à tragédia, pois uma das condições primeiras para se retomar
a vida é a reprodução e poucos mantiveram seus órgãos genitais.
.......
Professor
Willianson lecionou história da religião na universidade da capital por muitos
anos, no final do século XIX. Antes disso era um pobre garoto, filho de pais
pobres na pequena cidade onde voltou a viver depois de sua aposentadoria. Seus
pais se sacrificaram muito para que ele pudesse ter estudos. Um dia finalmente
conseguiram dar ao seu filho o que nunca seque puderam sonhar, Willianson foi
estudar na grande universidade da capital. Universidade aristocrática, onde só
nobres e filhos de grandes burgueses estudavam. No entanto, Willianson era
brilhante e se consolidou como uma prodigiosa exceção.
Até
se tornar um deles. Foi um processo
lento e doloroso. Willianson foi negando os ensinamentos de seus pais,
ignorando a humildade que caracterizava os simples camponeses da pequena cidade
e que era tão estranha no centro acadêmico da capital da qual agora ele fazia
parte.
Willianson chegou ao cargo
máximo, reitor da universidade da capital. Mas o sucesso teve seus custos. Não
só negou aos ensinamentos de seus pais, mas negou seus próprios pais. Quando
informado pelo seu secretário pessoal que sua mãe estava adoecendo na cama de
sua antiga casa, pediu um momento, foi ao banheiro e deixou cair uma lágrima.
Limpou-a, saiu do banheiro e pediu para que o secretario cuidasse para que
nunca chegasse ao público qualquer notícia de seus pais. Eles morreram e ele
não deu seu adeus.
Willianson
foi um dos mais importantes nomes que a universidade da capital teve em sua
história. Alcançou o ponto máximo de sua carreira. Ele havia se aposentado
semana passada, e há duas mudou para a pequena cidade onde nascera. Comprou a
maior mansão da cidade.
Sentou
na cadeira de seu quarto diante de sua escrivaninha. Pegou uma folha branca de
papel de carta na segunda gaveta. Pegou uma caneta e começou a escrever sua
carta de suicídio. Uma tristeza lhe tomou a alma e uma lágrima lhe escorreu no
rosto indo em direção ao papel branco. Uma densa e volumosa gota de tinta se
projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha
na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto
tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e
transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de
inexplicável força.
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