quarta-feira, 16 de julho de 2014

Gota



Uma densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de inexplicável força.
Nem bem deu tempo de Willianson se surpreender enquanto toda sua face era rasgada e descolada de sua cabeça, sendo sugada para dentro do vortex negro que se formara na folha de papel, deixando no lugar onde antes se encontrava seu rosto um buraco escuro onde se viam carne viva, veias e o crânio sob as camadas orgânicas que o revestiam.
- Os olhos... – começou a dizer sem entusiasmo Sra. Maury, funcionaria mais antiga da casa que cuidava dos aspectos domésticos e estava varrendo o fundo do enorme quarto de Willianson – eles continuam. Ficam, pois servem para ver, para que contemple o que foi de si e o que fica. – Maury falava sem se surpreender com o que acontecera, sem sequer parar de varrer o pó.
Os olhos de Willianson estavam pendurados pelo nervo ótico que se juntava ao buraco de onde fora arrancada sua face. E contemplavam com tristeza o reflexo na janela do quarto, o reflexo do que se tornara.
- Não é bonito – era o jardineiro, Sr. Maxwine, que apareceu na janela do quarto, de repente – mas é o que te sobrou de bom. Caiu-te a face, e até que sobras um tanto de bom. És, tirando o que se mostra ser, um bom homem.
Willianson se mostrava agoniado, não conseguia falar, mas emitia um grunhido de comovente desespero. Pelo corredor que dava no quarto apareceu correndo Sra. Bovaly. Era baixa e gorda, uma mulher simples e grosseira, mas eficiente camareira. Ela entrou no quarto e com um sorrisinho maldoso contemplou o desespero de seu patrão.
Guilhary, o porteiro da casa, veio atrás pelo mesmo corredor, mas, ao contrário do sadismo de Bovaly e da indiferença de Maury e Maxwine, mostrava preocupação e tristeza com a condição do “chefinho”, como carinhosamente chamava Willianson. Ao se dirigir ao quarto do patrão, Guilhary deixara o portão da casa aberto e sem proteção. Não demorou para curiosos, vindo de toda a pequena cidade, se espremerem no corredor e no quarto para terem uma visão da desgraça de Willianson.
Alguns riam, outros se impressionavam, as crianças acompanhadas de seus pais choravam diante do macabro espetáculo. A mancha preta que já cobria quase todo o papel começou se avolumar, projetando-se para fora do papel e começou a girar como um redemoinho. Um grito agudo veio, de súbito, de uma das primeiras expectadoras da massa de curiosas. Era Bovary. Um buraco abrira bem no meio de sua barriga e suas tripas foram sugadas para dentro da mancha preta que agora já tinha tomado todo o papel e passava a se espalhar pela escrivaninha. Junto com as tripas vieram atrás toda massa de gordura, deixando Bovary caída no chão, como um balão estourado, urrando de dor. Dentro de sua carcaça batia ainda um enorme coração, encapado por uma grande massa de banha. O coração parecia lutar para dar cada batida sob a pressão da jaula de gordura que o revestia. Não mais.
O coração parou de bater e foi sugado para dentro da mancha peta que já cobria toda a escrivaninha e começava a se projetar para as paredes do quarto. A esta altura, Willianson, todos os curiosos e os funcionários da casatinham saído do quarto e se concentravam no quintal que dava para a janela do cômodo. Alguns mais curiosos se debruçavam no parapeito da janela para observar melhor o que acontecia no quarto.
O Padre Jonas, que também se encontrava no quintal, pronunciou em tom de sermão:
- É tudo uma metáfora divina. A mancha representa a maldade quedentro de nós! O coração da mulher deu poder a mancha, pois estava impregnado de pecados, era um coração distante de Deus! Os bons de coração serão salvos! – o padre foi quem tomou a maior distância da mancha entre todos os curiosos.
Em pouco tempo a mancha já havia tomado a casa toda e os curiosos, agora muito mais desesperados fugitivos do que curiosos, se distanciavam dela como podiam. Foram sendo sugados um a um. E cada qual de forma peculiar. O cientista, por exemplo, teve seu cérebro arrancado violentamente de sua cabeça. Ele fazia pesquisas para laboratórios de remédios da capital, a pequena e provinciana cidade era um laboratório ideal.
O padre correu como pôde, mas teve sua língua arrancada. Se sentiu aliviado, no entanto, com a esperança de que seria só aquilo. Mas não demorou até ser devorado por inteiro pela mancha.
Alguns resistiram por muito tempo e até imunes. O banqueiro e o dono da mina de carvão sobreviveram por muito tempo. Pareciam imunes a mancham, mas só eram muito pesados, isto é, continham muita mancha preta. Foi quando foram finalmente sugados que a mancha tomou proporções continentais. E cresceu em progressão geométrica até tomar todo o globo e depois se dissipar no espaço.
Alguns sobraram. Inclusive Willianson, sem seu rosto. Sobraram padres também, embora todos os bispos tenham sido sugados. Sobraram gente de todas as partes, de todos os tipos, ainda que poucos e mutilados. Era difícil de se imaginar que a Terra sobreviveria à tragédia, pois uma das condições primeiras para se retomar a vida é a reprodução e poucos mantiveram seus órgãos genitais.
.......

Professor Willianson lecionou história da religião na universidade da capital por muitos anos, no final do século XIX. Antes disso era um pobre garoto, filho de pais pobres na pequena cidade onde voltou a viver depois de sua aposentadoria. Seus pais se sacrificaram muito para que ele pudesse ter estudos. Um dia finalmente conseguiram dar ao seu filho o que nunca seque puderam sonhar, Willianson foi estudar na grande universidade da capital. Universidade aristocrática, onde só nobres e filhos de grandes burgueses estudavam. No entanto, Willianson era brilhante e se consolidou como uma prodigiosa exceção.
Até se tornar um deles.  Foi um processo lento e doloroso. Willianson foi negando os ensinamentos de seus pais, ignorando a humildade que caracterizava os simples camponeses da pequena cidade e que era tão estranha no centro acadêmico da capital da qual agora ele fazia parte.
Willianson chegou ao cargo máximo, reitor da universidade da capital. Mas o sucesso teve seus custos. Não só negou aos ensinamentos de seus pais, mas negou seus próprios pais. Quando informado pelo seu secretário pessoal que sua mãe estava adoecendo na cama de sua antiga casa, pediu um momento, foi ao banheiro e deixou cair uma lágrima. Limpou-a, saiu do banheiro e pediu para que o secretario cuidasse para que nunca chegasse ao público qualquer notícia de seus pais. Eles morreram e ele não deu seu adeus.
Willianson foi um dos mais importantes nomes que a universidade da capital teve em sua história. Alcançou o ponto máximo de sua carreira. Ele havia se aposentado semana passada, e há duas mudou para a pequena cidade onde nascera. Comprou a maior mansão da cidade.
Sentou na cadeira de seu quarto diante de sua escrivaninha. Pegou uma folha branca de papel de carta na segunda gaveta. Pegou uma caneta e começou a escrever sua carta de suicídio. Uma tristeza lhe tomou a alma e uma lágrima lhe escorreu no rosto indo em direção ao papel branco. Uma densa e volumosa gota de tinta se projetou sobre o papel branco, arremessando respingos por ele todo. Era a folha na qual o Professor Willianson se esforçava para escrever a carta. O preto tomou rapidamente quase todo o branco da folha, invadindo os respingos e transformando-os todos em uma só poça uniforme que se dotou de uma sucção de inexplicável força.





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