quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Chapéu (Parte I)



Você já foi dormir para encontrar alguma coisa? Para buscar nos sonhos aquilo que você não vê com os olhos abertos? Toda noite vejo aquele homem sem rosto que segura um guarda-chuva na mão esquerda e espera no metrô vagões que passam vazios. Quando me aproximo ele acena com a mão esquerda para que eu o siga. Por mais que eu corra não alcanço o vagão no qual ele entra. Ele pula para dentro deoxando cair seu chapéu preto – ele não tinha um chapéu preto. No início do sonho, enquanto eu o observo de longe, parado diante dos vagões que passam, ele não usa um chapéu, acho. Este detalhe me foge a cada e toda noite, isto é, se ele o usa o chapéu o tempo todo ou apenas quando pula para o vagão deixando-o cair. Há vezes que, num atlético movimento de desespero, eu tento pular para dentro do vagão, mas nunca dá tempo, eu acabo caindo nos trilhos e então acordo. Mas quase sempre eu fico diante da plataforma e vejo o vagão se distanciar com o homem misterioso. Pego o chapéu caído no chão e examino. Na parte interna há um pequeno texto inscrito em letras douradas: “Preciso de sua ajuda, acredito poder confiar em você, mas mais do que isso, você tem o potencial necessário. Me encontre em...”. Droga! Às vezes acordo neste momento... Cada vez mais meu sonho tem acabado neste momento, embora às vez vezes ele prossiga...
Você tem controle de suas ações em um sonho ou é apenas uma espécie de gravação que você assiste impotente com a perturbadora sensação de que está participando da cadeia de fatos? Embora já tivesse amanhecido voltei a dormir, mas não consegui voltar ao sonho. Acordei umas suas horas mais tarde. Eu não tenho exatamente algo importante para fazer nesta quarta-feira, estou desempregado. Mas tudo bem, afinal dinheiro não é tudo... Brincadeira, eu sou pateticamente sustentado pelo meu pai. Apesar de que depender do dinheiro do pai aos 32 anos me deixa um pouco chateado, fere um pouco de meu orgulho, a despeito disso, eu, ao menos, não sinto pena do dinheiro dele. É uma boa ação, todo aquele dinheiro não cabe em seu bolso, então eu pego uma parte do que transborda. A verdade é que eu podia pegar bem mais, mas apenas aceitava o necessário. Levando em conta o berço de ouro em que nasci, vivo humildemente, no geral como um proletário médio das grandes metrópoles. Com a exceção de que não trabalho e que como e bebo muito bem para um proletário das metrópoles.
Eu devia procurar emprego para resolver o problema da auto-estima. Mas já é quase meio-dia, muito tarde para procurar um emprego, talvez fique para amanhã. Está frio e, como já disse, nada de especial me convida para levantar. Deixei o corpo do meu corpo cair na cama, virei de lado e quase voltei a dormir. O telefone. Eu gosto de telefone, da idéia de se ter um telefone e de todas as comodidades que ele proporciona, de fato, sou um grande entusiasta do progresso humano. Mas eu odeio quando ele toca. Odeio como ele grita impaciente obrigando você a antendê-lo. Filho da puta histérico! Isso me matava. Cortei o sofrimento:
“Alô”, eu disse.
“Alô...”, me respondeu uma voz impaciente, vagamente familiar.
...
“Hã, quem é?”
“Escuta, é a última vez que ligo. Você marcou consulta para às duas. Desta vez você vem?”. Caramba. Ela estava mesmo irritada. Mas agora que reconheci a voz e entendi do que se trata eu posso dizer, tinha um pouco de culpa mesmo. Faz uns três meses que comecei a sentir uma terrível dor aguda nos meus... bom, eu esperei um tempo, e depois mais um pouco, para ver se passava, mas como não passou eu marquei uma consulta com um urologista. Que coisa horrível, um urologista... Acontece que eu marquei a consulta três vezes e, sem avisar, não apareci nas duas primeiras e a terceira é hoje, como a secretária acaba de me lembrar agora. Acho que ela estava desistindo de mim, então hoje eu vou, prometo. Acho...
“Ah, sim, desculpa. Mas é claro, às duas horas, né? Pode confirmar!”
“Certo Monteiro... está, mais uma vez, confirmado...”
“Hã, certo... Obrigado, até às duas!”, e ela desligou. Na minha cara. Mas eu merecia.
Pensando melhor, acho que não vou. Ainda dói, é verdade. Mas você acaba se acostumando a viver com a dor. Você se adapta. Não é que eu tenha medo de ir ao médico, eu não tenho. Mas não é legal quando mexem nas suas “coisas”, sobretudo, se elas estão doendo. De repente o telefone começou a me encarar e eu fiquei pensando em como ele ficará irritado e o quanto ele gritará histericamente quando passar das duas horas e mais uma vez, sem justificativa, eu não comparecer ao maldito compromisso. Nada é mais desagradável que quando o telefone fica muito, muito bravo com você. É triste, essas coisas me deixam muito triste. Eu vou.
Vesti-me rápido. Nem tomei banho, estava frio e meu cabelo razoável. Saí de casa e fui em direção ao consultório. Dá para ir a pé em menos de 30 minutos. Eu sabia que rua tinha que pegar, embora nunca tivesse passado por lá. É uma cidade enorme, mas eu a conheço muito bem, me viro bem, sobretudo com o metrô. Eu adoro o modo como você anda incógnito nessas metrópoles. Ninguém julga o que você veste, para onde vai e porque, ninguém está nem aí. Ora, seria meio constrangedor se me olhassem e dissessem “olha lá o Monteiro indo ao urologista, seus genitais estão apodrecendo, também pudera, com a vida que leva...”. Pra falar a verdade eu temia que, no entanto, o médico me julgasse, aquele estúpido julgamento profissional – uma espécie de julgamento perito de mãe.  Eu mesmo me julgo, me pergunto de onde surgiu essa dor. Dois dias antes de ela começar eu meio que paguei pelos serviços de uma não, mais duas putas. Quando você sai com duas putas você perde o controle da higiene e coloca até sua saúde em risco, eu sabia que era estupidez, mas eu sou um estúpido, admito. Não havia sido a primeira vez e apesar de tudo eu não tinha nenhum problema moral ou ético comigo mesmo em relação a isso. Mas não faço questão que as outras pessoas saibam. Não quero a aprovação de ninguém, mas também dispenso a reprovação.
Eu já estava mais da metade do caminho quando parei diante da vitrine de uma pequena loja. Uma loja que vendia chapéus e eis que lá estava o chapéu. Isso mesmo, o chapéu. É óbvio que entrei. Um velho, gordo, gordo mesmo, um barril, com barba de bigode brancos e trajando uma roupa que, de repente, me fez perguntar se eu tinha voltado para o século XIX, falou sob sua cartola:
“Pois não, senhor?”, eu estava um tanto distraído, às vezes fico distante o que irrita as pessoas. A imagem do velho gordo com aquela enorme cartola despertou uma infantil curiosidade em mim. Você vê todos dias uns tipos estranhos nas ruas quando mora em uma metrópole, mas nunca tinha visto um homem do século XIX. Enquanto eu pensava sobre se era mesmo um homem do século XIX – estava quase convencido de que se tratava de um daqueles industriais muito ricos e maldosos do século XIX – o homem voltou a perguntar com uma surpreendentemente calma (tendo em vista que era um homem de aparência grosseira e maldosa):
“Senhor? Pois não? No que posso ajudar?”
“Ah, oi! Desculpa. O senhor vem do passado? Digo, do século XIX?”, e eis que fazia uma das perguntas mais idiotas entre todas as perguntas extremamente idiotas que já fiz em toda minha vida.
“Pois não?”, ele voltou a perguntar com cara de quem não havia entendido minha pergunta. Menos mal. Comecei a me indagar se o vocabulário dele tinha outras palavras além de “pois não?”. Podia ser um robô programado para ser um vendedor de chapéus do século XIX.
“Eu me interessei por um chapéu que está na vitrine” e apontei para ele, o chapéu. É exatamente igual o chapéu que via nos meus sonhos. Não, não é somente igual, é ele.
“Ah, ora... Ora... Perdão senhor, mil perdões!”, se desculpou o velho muito perturbado.
“Infelizmente... infelizmente, muito triste... infelizmente o chapéu já está vendido para um outro senhor... esqueci de tirá-lo da vitrine... Oh, sim esqueci... Mil perdões, mil perdões, falta terrível!”, já são pelo menos três mil perdões, e de onde eu venho tudo é mercadoria, inclusive perdões. Eu não engoli. Não consegui imaginar alguém comprando um chapéu para levar só depois. Em outra hipótese ainda mais remota, ninguém liga para uma chapelaria e diz “ontem passei com pressa pra sua loja e vi um incrível chapéu, aquele que aparece nos sonhos do senhor Monteiro, gostaria que você, por favor, o reservasse, pois vou buscá-lo amanhã.” Isso não existe.
De repente começo ter a nítida impressão de que estou fazendo parte de uma conspiração e a resposta, sem dúvida, estava naquele chapéu que eu estava sendo impedido de comprar. Fingi lamentar “uma pena, o chapéu ficaria excelente em mim, combinaria com minha calça jeans...”. Mentira, é claro, afinal ao sair daquela loja eu estaria de volta ao século XXI e usar aquele chapéu seria ridículo. Virei como se fosse sair da loja e, em um rápido movimento provido de extrema habilidade, peguei o chapéu e saí correndo como um leopardo. O velho gordo saiu de traz do balcão com uma inacreditável destreza e da porta de seu estabelecimento gritou “Ladrão! Pega ladrão!”.
Não nasci sequer para roubar chapéus do século XIX. Há uma quadra da loja pude ver uma viatura da polícia. Correr foi completamente inútil. Se eu continuar fugindo vou levar um tiro, então resolvi me entregar.
“Desculpa seu guarda, roubei este chapéu, mas juro que tentei pagar por ele.”
Um dos policiais me algemou (eram dois), me jogou na viatura com desnecessária violência e se dirigiu junto com o vendedor gordo e sua monumental cartola (que teve que ser carregada no colo, pois não cabia dentro do carro) ao distrito policial. Nem disse que eu tinha  direito de ficar calado. Mas eu julguei que era melhor não falar nada. Eu já tinha feito algumas merdas na vida, mas agora estou sendo preso... por roubar uma porcaria de chapéu. Parece meio ridículo, mas estou um pouco entusiasmado e claro, com um pouco de medo. Mas pra quem se dirigia a um urologista para ter suas coisas mexidas, terminar algemado numa viatura de polícia é algo emocionante.
Nada de interessante aconteceu nos próximos quarenta e pouco minutos. Cheguei no distrito e fiquei esperando um tempão até que Santiago, o delegado encarregado me chamou para sua sala. Ele já tinha ouvido o chapeleiro e o policial que tinha me prendido. “Em flagrante”.
“Você foi pego em flagrante”, começou o homem. Ele parecia tratar o assunto sem muito entusiasmo. Caramba, estou cagando nas calças e o delegado tratando aquilo como se fosse...
“Um furto de chapéu... Veja bem João Monteiro Salgado, já foram 3 homicídios, dois casos de estupro e algumas agressões físicas graves, só hoje... então, embora você tenha garantido por lei o direito de esperar seu advogado, podemos combinar o seguinte. Você me dá um breve depoimento e está livre, caso encerrado...”. Ele parou de falar e olhou para mim, eu não respondi nada, então ele continuou.
“Já conversei com o chapeleiro e com o policial, o primeiro me disse que você tentou comprar o chapéu que, no entanto, já estaria vendido. O policial aceitou relevar sua tentativa de fuga, então todos ganharão se deixarmos nisso mesmo, de acordo?”
Eu estou tão nervoso que nem sei o que dizer, mas a proposta me pareceu safistatória, no entanto, quando estou nervoso falo besteira...
“O chapeleiro está envolvido em uma conspiração”, se eu tivesse respondido “tudo bem, onde assino?” eu já estaria indo embora...
“Uma conspiração?”, o ar de tranqüilidade do delegado mudou abruptamente. Mas não parece ter levado a sério, na verdade ele ficou irritado, porque já eram quase três da tarde e ele nem tinha almoçado ainda.
“Olha senhor...”, ele pegou a ficha para relembrar meu nome, embora eu tenha certeza que só é parte de uma encenação para me diminuir perante sua reivindicada autoridade “... Monteiro. Eu realmente não estou aqui para brincar. Isso não é uma brincadeira, você acabou de cometer um assalto, foi pego em flagrante... eu quero almoçar e você quer ir pra casa, então vamos fingir que você não falou a palavra ‘conspiração’ aqui, ok?”
Ele me deu uma segunda chance e desta vez eu estava um pouco mais tranqüilo, então diante da corrupção policial que se projetava covardemente sobre meu triturado senso se justiça, aceitei assinar os papéis e voltar para casa. Era um caso para ser resolvido sozinho.
Já são mais de três horas, fui descendo a escadaria da delegacia sem olhar para trás. Estava um dia muito bonito, a temperatura muito agradável. Embora o metrô fosse o meio mais rápido para chegar em casa resolvi ir a pé, tentando colocar em ordem os acontecimentos extraordinários daquele dia. Embora minha vontade seja voltar à chapelaria e mais uma vez tentar tomar posse daquele chapéu, não seria uma boa idéia hoje, quando tinha acabado de ser preso por essa mesma tentativa frustrada. Então simplesmente fui andando, me levando automaticamente pelas ruas até chegar em minha casa, um apartamento de quatro cômodos no quarto andar daquele cinzento prédio residencial que permanecia vivo, sozinho, naquele bairro tomado pelo comércio. Era um bom lugar, mas meio barulhento. Eu não ligava pro barulho, dormia bem e dormia pra caramba.
Foi uma boa caminhada, não consegui colocar os pensamentos em ordem, mas eles ao menos ficaram fresco em minha mente quando cheguei em casa um pouco antes das cinco, tirei meus tênis e me joguei na cama. Não estou planejando dormir, apenas descansar minhas pernas, mas o sono veio mesmo assim. Há alguns metros de mim o homem sem rosto na plataforma de embarque do metrô, os vagões passando vazios em sua frente, ele acena para mim...
 (Continua...)

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