domingo, 3 de outubro de 2010

Não entendo a fé política




Escrever sobre política, hoje em dia, é complicado. É como escrever sobre religião. Ora, seja para acreditar nas palavras de um político, seja para acreditar em um deus, é preciso fé. E quando se trata de fé não há discussão, se acredita e pronto. A diferença fundamental que me leva a escrever sobre política e questionar as decisões feitas neste meio e não no campo da fé religiosa é que os militantes são crentes de deuses vivos. Deuses que, convenhamos, estão mais para demônios.
É claro que se muda o mundo usando da fé religiosa, se faz guerras, e até se ganha prestígio na política, mas daí é política vestida de religião – é política e ponto final. Eu poderia dar milhares de exemplos de coisas que parecem religião, mas são, na verdade, política: a Igreja, por exemplo, é a santa instituição criada por Jesus Cristo para cuidar de assuntos religiosos aqui na terra, certo? Errado! É uma instituição política que nos tempos livres dá palpites religiosos, embora diga o contrário. E olha que eu sou católico praticante. As coisas humanas são por natureza, ou melhor, por suas origens sociais, política. E se Jesus pediu para homens cuidarem de seus assuntos divinos enquanto ele estivesse ao lado direito de Deus, lá em cima, ele deixou coisas religiosas sob o cuidado da política, com todos os riscos que isso pode acarretar e, de fato, acarretaram ao longo de mais de dois mil anos. No fundo, no fundo, toda religião é política, pois, a despeito do que elas pregam, são todas humanas.
Mas e a política mesmo? Digo, aquela sobre a qual nos ocupamos aqui no Brasil a cada dois anos? É difícil falar sobre ela, é complicado dizer qual candidato é melhor que o outro, mas é, sobretudo, impossível entender como algumas pessoas se entregam com tamanha paixão e devoção a uma escolha política na política brasileira de hoje.
Vamos simplificar: a corrida eleitoral para a presidência do Brasil a partir de 2002. Neste ano, concorreram como principais candidatos José Serra (PSDB) e Lula (PT). Neste ano ainda era compreensível as paixões que se moviam. O PT ainda estava com sede de poder, depois de perder todas as eleições para presidente desde 1990, Lula enfim parecia que ia ganhar, e ganhou em 2002 de Serra. Vejo sentido nas emoções que esta conquista do operário pobre que virou presidente despertou na população, nos vencedores e nos perdedores. Entendo a militância ideológica nesta época, embora eu já a considere ingênua, ao menos ela fazia sentido – tínhamos de um lado o projeto de continuidade conservadora dos tucanos que temiam o barbudo socialista do partido de bandeira vermelha e que era, ora pois, dos trabalhadores. Do outro lado havia os ainda nostálgicos petistas, da época de um PT que era um partido dos trabalhadores, preocupado com os interesses dos trabalhadores. Parecia, e eu disse “parecia”, uma disputa entre direita e esquerda. Pelo menos nas aparências havia dois projetos bem distintos. Foram oito anos de poder, e a cada ano que passou o PT foi morrendo, ou melhor, foi se adaptando a política que temos hoje, foi se tornando o PSDB.
Mas no meio deste processo, entre estes oito anos de Lula, houve outras eleições em 2006: Alckmin conta Lula. Oposição contra posição. Oposição de quê? PT e PSDB se confundiam. Quatro anos foram suficientes para que o Partido dos Trabalhadores mostrasse que, a despeito da bandeira vermelha (que remete a simbologia socialista) e o “trabalhadores” no nome, não havia nada mais de socialista ou de trabalhador nele. Era o PT, mas poderia ser o PSDB. Em 2006 deu o PT, deu Lula de novo, e lá se foram mais quatro anos de PT – que poderia ser PSDB. Alguém notaria a diferença? Talvez o Alckmin e sua equipe tucana não tivessem tido a criatividade de marketing para seus projetos sociais tanto quanto teve o Lula com os geniais “Bolsa Família” e “Fome Zero” – porque o marketing social do PT, ao longo destes oito anos, foi brilhante. E Lula tem virtú que é aquela coisa que Maquiavel, em “O Príncipe”, compara com fortuna. Se trouxermos os conceitos para os dias de hoje, virtú englobaria as qualidades que se atribuem a um bom político, no sentido de parecer ser um bom político e não necessariamente sê-lo. A fortuna são as oportunidades que cada político recebe independentemente de merecimento próprio – guardem isso, vou usar quando falar da Dilma Roussef. Então, tirando o marketing social e a virtú  do Lula, os governos PT e PSDB foram, salvo pequenas diferenças e, a despeito das expectativas que haviam com a posse do Lula, em 2002, rigorosamente iguais.
Então, depois de oito anos de PSDB com o então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) e oito anos de PT com Lula, chegamos a 2010. Em 2010 a disputa é, de novo, entre PT e PSDB. Pois é, já perdeu a graça. São sempre os mesmos partidos, mas é pior, são os mesmos partidos que são, na verdade, as mesmas coisas. Hoje o PT é o PSDB, com a diferença de que o PT ainda usa a estrela vermelha e o Lula ainda é barbudo o que acaba por assustar alguns direitistas conservadores. Para algumas pessoas a embalagem política ainda faz alguma diferença, mas daí precisavam avisá-los que passaram a vida inteiro votando num partido que se veste com o nome da social-democracia. O PT é hoje tão vermelho e “dos trabalhadores” quanto o PSDB sempre foi social-democrata.
Mas nada disso importa porque, ao que parece, PT e PSDB ainda são na política brasileira o que Brasil e Argentina são no futebol mundial, ou o que judeus e palestinos são para a paz mundial. E é precisamente isso que não consigo entender. É claro que se deve escolher entre Serra e Dilma Roussef, do PSDB e do PT, respectivamente, mas não necessariamente respectivamente, mas, por acaso, respectivamente. Não vejo absolutamente um ponto em que se diferem. É claro, Serra tem carreira política, já se sabe o que esperar dele, qual é seu projeto (ou falta de projeto) e sua visão política. Basicamente continuar a política neoliberal – mas não tão radical quanto na Inglaterra de Thatcher – iniciada no governo FHC, mesclada com migalhas de assistência social. Exatamente como fez Lula em seus oito anos, só que este, como já observei acima, soube se aproveitar da propaganda para que todos os pobres do Brasil tivessem a certeza de que o dinheiro que recebem  é fruto da generosidade do presidente. Maquiavel se orgulharia de Lula, ele é o príncipe do Brasil, fosse outra época, ele passaria décadas aqui e sendo amado pelo povo.
Mas se Maquiavel daria nota dez para Lula, desprezaria sua criação: Dilma Roussef. Dilma não tem virtú nenhuma, não sabe falar em público, não tem carisma, é feia e parece ser má (e não em um bom sentido maquiavélico) – eu tenho medo dela, não de suas políticas, mas dela, de sua horrível imagem que continua sendo pavorosa mesmo com o que há de mais tecnológico a disposição para fazer dela uma política apresentável. Mas o Lula tem tanta virtú que disse para o povo:
- Esta porca feia é minha candidata, votem nela e continuarão recebendo o bolsa família. Ela é feia como o satanás, mas é minha candidata. O Serra vai privatizar o bolsa Família.
E o povo vota na Dilma, há um ano nenhum bolsista do programa social do Lula sequer tinha ouvido falar dela – e ela quase levou no primeiro turno. Isso é fantástico, falem o que quiserem do Lula, mas ele merece um lugar de destaque na história dos grandes líderes da história mundial. Mas no fundo são dois projetos iguais de continuidade, por isso não entendo quando alguém se exalta em defesa de um de outro candidato. Defender Dilma ou Serra é a mesma coisa que defender Skol ou Brahma, você pode até preferir uma a outra, mas não vai ter uma crise se não tiver a marca de sua preferência em um churrasco. Pois então, me espanta como ainda persistem eleitores que acreditam em algo que não está lá.
Muitas pessoas te olham com indignação se você diz: “estou INDECISO, mas ACHO que, TALVEZ, eu vote no Serra...”, logo respondem:
- Serra?!?!?!?! Você está louco? O Serra é um monstro!!! Ele vai assassinar a educação, vai dar meio salário mínimo para os professores e vai levá-los a um campo de concentração. Vai privatizar as ruas, sua casa, seu cachorro, seus livros, sua esposa, sua mãe!!! Blá, blá, blá...
Eu concordo com ressalvas. Mas, sinceramente, e daí? E a outra candidata? Ela não herda uma mesma política de completo descaso com a educação pública? Educação não é tanto para um quanto para o outro um meio de obter fins políticos? Não é por isso que criou projetos como o Reuni e o Prouni? Que se aparentemente são muito bons:
- Eba! Meu filho é um retardado analfabeto, mas agora graças ao PT vai pra facuuuuul!!!
Mas que faculdade é essa? É aquela em que nossos avôs e nossos pais estudaram? Ou é uma que está em processo acelerado de sucateamento? Em que se colocam professores recém formados para dar aula em uma turma de cem alunos? Uma faculdade que não consegue atender os interesses mínimos de seus alunos, que é produtora de ciência por excelência, mas não tem programas de iniciação cientifica para quase ninguém, que falta instalações e equipamentos? Que bosta de projeto educacional é este do PT que é tão melhor que o do satânico José Serra?
E sobre as privatizações: o PSDB achou legal por um tempo privatizar as coisas, eu não concordo com isso, mas alguém viu o Serra defendendo, em algum momento, as privatizações? O Serra não vai mais privatizar nada e não porque não concorde com isso, mas porque é algo impopular e a única coisa que ele ou a Dilma querem assim que subirem a rampa do Planalto, no dia Primeiro de Janeiro de 2011, é planejar sua reeleição em 2014 – então esqueçam educação, esqueçam projeto de longo prazo, pensem em medidas eleitoreiras, pensem em enganação – este será o seu Brasil pelo menos nos próximos quatro anos.
Um nome merece aparecer aqui, merece aparecer em algum lugar – é o de Plínio Arruda de Sampaio. Ele fez a eleição ser algo mais que monótona, mas menos de 1% dos eleitores brasileiros notaram. Plínio foge do padrão de se fazer política de hoje, e hoje a política é triste, a democracia é triste. É triste porque nos acomodamos, é triste porque sabemos que está ruim, mas não está ruim o suficiente para querermos que melhore. Porque as grandes coisas só aparecem por trás da poeira levantada do caos – então que venha o caos porque entre Serra e Dilma eu prefiro anular meu voto.