sábado, 27 de março de 2010

Um ser são, numa sociedade doente



Este texto foi escrito em abril de 2005, coloco ele aqui originalmente como foi escrito então. As únicas modificações que me senti tentado a colocar estão em negrito.

Um ser são, numa sociedade doente


“Estava escuro, passavam das onze e meia, estava sentado naquele banco da praça, os transeuntes noturnos com suas caras fechadas pareciam me encarar. Passou um gordo fedorento, na verdade nem conseguia sentir seu cheiro, mas sua aparência repugnante seria incoerente caso não fedesse. De todos que passavam por lá, aquele ser era o mais nojento – um rato gordo que parecia implorar, “mata-me”. Com seus olhar irritante, me encarou, parecia ter dado uma piscada. Acabei com seu sofrimento, me atirei em cima do ser roliço e com meu inseparável canivete laranja abri um corte em seu pescoço”. Esse é o relato escrito que fiz no primeiro dia de internação no hospício, agora dez anos depois me sinto diferente.
Convenceram-me de que era louco e que as pessoas da praça não me encaravam, era tudo fruto da minha imaginação. Os remédios me faziam bem, pelo menos era o que diziam. Meu bom comportamento e o sinal de sanidade que eu já apresentava há longos tempos seriam premiados com uma visita ao zoológico da cidade.
Partimos cedo, nós três – eu, Eusébio e Nero. Eusébio, às vezes, me irritava, no alto de seus quase dois metros de altura era o responsável por não nos permitir assistir a TV em determinados horários, proibia-nos de jogar cartas e, tudo isso, sem nos dar satisfação alguma (não se dá satisfações aos loucos, ao que parece). Eu já devia tê-lo matado antes, ele faz por merecer, sempre faz. Nero era uma estátua, nunca o ouvi dizer uma palavra, minto, certa vez quando eu descansava na cadeira assistindo a TV, disse-me que eu era uma pessoa sã, que eu não devia estar lá: “Fuja, fuja desse lugar!”, cochichou em meu ouvido. Foi a única vez que o ouvi falar, mas confesso que deve ter sido apenas uma ilusão criada pelo meu subconsciente.
Já estávamos na entrada do zoológico, Eusébio não parava de passar instruções, sua voz irritante somado ao insuportável calor fazia meu sangue ferver, se estivesse acompanhando do meu canivete laranja... Não, eu não faria nada, mudei, não sou mais louco.
Andamos pelo zoológico, primeiro vimos os pingüins, seguimos o caminho passando pela girafa, gorila, onça... As pessoas me irritavam! Elas fediam e faziam barulhos insuportáveis, uma criança com seu pirulito chorava e pedia para ver o leão, por que não punham o desgraçado dentro da jaula de uma vez? Por que nos preocupamos tanto com as pessoas? Vermes insignificantes rastejando pelo chão do zoológico, apontando a tromba do pobre elefante não percebem sua mediocridade, julgam-se mais inteligentes que os animais que sabiamente calados apenas observam o declínio da raça humana, uma raça arrogante e  hipócrita.
- Eu não sou igual a eles.
- Que? – Eusébio adorava fingir cinicamente não ouvir o que os outros diziam, com seus entoados “quês” fazia tudo o que eu falava parecer um absurdo, esse costume me irritava, sempre tinha vontade de matá-lo, Nero, calado como sempre, só observava, seu semblante revelava sabedoria, era indubitavelmente um humano diferente.
- Você disse que não é igual a eles? Eles quem?
- Você e todos os outros humanos, sou diferente, descobri que não sou louco, só não sou como vocês, uma raça decadente perto da extinção.
Naquele momento todo meu avanço em dez anos de internação se esvaeceu antes aos olhos do incrédulo Eusébio. Só restava a mim fugir, e assim o fiz.
Dez anos se passaram, sou tido como morto – é assim que classificam os fugitivos que não conseguem encontrar, conveniência, eu não dou à mínima. Foi naquele dia no zoológico que percebi que o único jeito de encontrar a felicidade, algo paradoxalmente tão humano, era fugindo dos humanos. Hoje vivo na floresta, na periferia da pequena cidade onde se encontra o hospício (me pergunto se ainda se mantém em pé aquele refúgio da realidade que repousa no fato de que a doença é a insanidade da própria existência humana, a separação física – em construções chamadas de hospício – dos anormais, mas mais uma vez, dou à mínima). Hoje sou feliz, junto dos pássaros e lobos ouvindo a encantadora melodia da água da cachoeira, o vento fazendo os galhos dos altos ipês dançarem, juntos dos animais espero o fim da raça humana, observamos espantados a podridão que se acelera nos centros urbanos, o fedor de parasitas que consomem a terra com suas vidinhas miseráveis.
Os animais me compreendem, sinto como se tivesse sido adotado quando criança por estranhos e hoje estou de volta para minha casa. Sou muito feliz aqui, os animais não fedem como os humanos, comunico com os animais através de olhares, venho gradativamente perdendo a vontade de matar, tenho complacência pelos humanos, são insignificantes, não sabem o que fazem.
 



Um comentário:

  1. Eu te amo tanto...adoro seus textos. Esse, especificamente, ficou muito bom!

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