sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Guarda-chuva


Chovia, e mesmo assim não era de um guarda-chuva que eu precisava. Era de algo que eu não sabia o que. Não me culpem, não sei, realmente não sei. Não sei o que, mas sei que preciso. Cheguei à conclusão, e ela é momentânea, – como todas minhas conclusões – que isso é a vida, a busca por algo o qual você não sabe e nunca saberá o que é. Você, eventualmente, acha os caminhos e a eles damos o nome de felicidade, mas o caminho não nos leva à destino algum, são apenas trechos, a felicidade não dura para sempre.
De certo, nesse exato momento, eu deveria estar procurando o caminho; algo me desviou, e, como tudo e só o que, na verdade, essa vida pede, eu precisava retomar o rumo, precisava encontrar a felicidade, mas não é o que estou fazendo. Não quero o caminho, quero chegar. E é por isso mesmo que não estou no bar, não estou me embriagando no mais fácil e rápido caminho; também, e pelo mesmo motivo, não estou a cativar as amizades o amor e os sentimentos relacionados a isso sejam eles quais forem; essas coisas, que, em longo prazo, são o caminho mais certeiro, mas que a maior longo prazo – já cheguei num momento da vida no qual posso dizer isso –, digo ao longo de uma vida, ou de quase toda ela, não te leva ao tão aspirado destino, isso eu posso garantir.
Alguns diriam que sou velho e infeliz, eu digo que sou apenas velho. Sou vítima, possuído pela maldição dos anos, a morte espreita a minha sombra e como que brinca comigo me deixando viver mais alguns aninhos. A um velho só resta refletir, depois dos 80 todos são filósofos – a não ser aqueles que já morreram, ainda que estejam vivos –, e não se pensa mais na vida, no que se pode fazer dela, mas o que foi feito, uma vez que não há tempo para fazer mais nada. Você é o juiz do seu passado e, ao menos que seja muito falso consigo mesmo, a sentença é que você é culpado. Ora, todos os outros a sua volta, aqueles que supostamente te amavam e que você amava (aos outros, aos que odiei ou simplesmente com quem fui indiferente eu não julgo, porque é pretensão descabida), também são culpados, até mais que você mesmo, mas estão num estágio da vida que ainda não perceberam e não podem ter percebido seus próprios pecados. A uma coisa a velhice certamente serve, ela embranquece seus cabelos, apodrece sua carne, mas também lhe da a culpa, não a culpa pelos erros, mas a culpa de toda sua vida, de todos seus dias, a culpa que é intrínseca à vida.
As gotas frias da chuva fina molham aquele rosto enrugado, feio, que sempre fora feio, mas que agora é, além do mais, velho. Eu gosto da chuva, ela molha, esfria, mas não engana, ela está lá, tem seu propósito definido, é imprevisível como a esperança, é o presente que esfria o futuro, o deixa distante, mas com a certeza de que chegará; já o futuro, este molha o passado, e o torna inalcançável. Este destrói e deixa a certeza de que não se reconstruirá. Assim eu pensava, “filosofava”, por assim dizer, se isso pode acrescer algo a inutilidade daquele momento de um velho reflexivo.
“Saia da chuva, quer ficar doente?”, eu queria, mas não podia, ninguém é dono do seu corpo, nunca, nem na sua juventude mais plena, no entanto, depois de certa altura seu corpo deixa de ser um estranho a si mesmo e a todos e se torna escravo de outros, não é mais nada seu e quase todo, do pior modo possível, de pessoas as quais você não confiaria nem sua urina diária. Isso é terrível, mas como se podia prever eu deveria obedecer, sair da chuva e voltar para dentro, insistir é inútil, e a resignação é a maior virtude que um velho pode carregar. Aceitar e esperar, é isso. Contestar você contesta quando ainda faz alguma diferença, mas quando não só você, mas todos esperam ansiosos por sua morte o melhor a se fazer é esperar e esperar quieto.
Mas, e esse conto só pode fazer sentido por causa deste “mas” que é, na verdade, vamos ser sinceros, uma ilustração metafórica e literária que dá à vida atributos os quais dela não fazem parte, isto é, um exagero, uma mentira, uma esperança que só tem espaço na ficção, eis o “mas”: Mas eu não saí da chuva:
- Não quero voltar e não vou. – a mulher, funcionária antiga, uma mulher competente e – e não “mas” – fria e cruel, daquela casa de descanso de velhinhos (as pessoas adoram eufemismos), não ficou surpreendida com minha resposta a qual considero, sinceramente, corajosa e desafiadora. Isso é natural, velhos falam muito para pouco serem escutados, talvez exatamente por isso mesmo falem muito, na esperança de que algo seja escutado.
- Senhor, será que você me escutou? Pode sair da chuva? Vai ficar doente. – Ela repetiu com um tom de indiferença como o qual ignora completamente meus argumentos, inválidos pelo fato de terem saído de minha boca, pois é, velha. Doente eu já estava, só faltava morrer.
Foi quando percebi, encontrei o que precisava. Quero dizer, o que precisava em toda minha vida, não o caminho, mas, e digo isso para manter a metáfora do velho reflexivo, o destino. Ia dizer, preparei em minha garganta (é dela que saem as palavras?) a resposta triunfante, enfim, pois, triunfara, mas a resposta não saiu, não poderia sair. Mortos não falam, e eu posso dizer-lhes isso agora que sei. Eu estava caído no chão e sim, morto. Não, não estava morto o tempo todo, morri naquela hora, naquele instante, pouco antes de poder dizer a frase que entalou em minha alma durante todos estes oitenta e dois anos. Morri de velho oras, a chuva terminou por congelar meu coração que já batia vacilante há anos, mas foi por muito pouco, uma meia fração de segundo, quase pude dizer. Agora morro com a resposta, e, nossa! quem diria, o que me faltou, na verdade, foi um guarda-chuva.

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