domingo, 31 de janeiro de 2010

O Menino Sem Alma


Madalena sempre dizia para Guilherme, seu filho, “você não dará certo na vida”; “pare de tentar, não conseguirá” e, pra falar a verdade, ela provavelmente estava certa no que dizia, mas é o tipo de coisa que não se fala, não para seu filho. Mas ela não fazia por maldade, era ignorância, aquela que não permite perceber que estamos sendo – vou usar uma palavra que, para alguns, parecerá ingênua, mas que aqui cabe perfeitamente – maldosos. Isso porque uma maldade, mesmo quando praticada sem querer, continua sendo uma maldade e fere a alma de alguém do mesmo modo. A de Guilherme, particularmente, dir-se-ia, salvo por algum mistério que apenas Deus pode explicar, já estava morta.
Guilherme era um humano sem alma. Sim, agora posso dizer; Deus, Ele mesmo, me contou. Estou morto e converso com Deus, nem todos conversam, apesar de onipresente, onipotente e, ainda por cima, mesmo considerando o fato de que o tempo para Ele é simplesmente desprezível, pois o tempo é coisa da Terra, do universo, e não divino (mas este é um segredo sobre o qual não estou autorizado a contar), mesmo assim, ele não atende a todos, e tão somente àqueles que são dignos de sua atenção, como eu. Antes de continuar a história, que não é a minha, destaco aqui o fato de que, apesar de eu falar com Deus, o caso de Guilherme me é um mistério, porque nem Ele mesmo fala sobre o assunto.
É que, e isso, ao que parece mexe até com a cabeça de Deus (Ele não tem cabeça, mas só digo isso para me poupar de em outras vezes ter que ficar explicando os usos metafóricos; assim, por conveniência e ignorando a realidade – que é chata na maioria das vezes – consideremos que Deus é um grande homem barbudo vestido de uma bela manta branca, o que não é verdade, mas é legal e cabe mais ao uso de metáforas). Isso, o que eu estou tentando dizer, é o fato de que Guilherme não tem alma. E ao que parece, em todos os tempos, desde o principio até agora (e sempre?), este caso é inédito. É consenso aqui no céu – na Terra toda a unanimidade é burra, no céu toda unanimidade é fato, verdade – que há uma relação intrínseca e indissociável entre o começo e o fim da existência de um ser, isto é, sua vida, e a alma. Em outras palavras, enquanto, e somente enquanto, um ser tem vida, ele tem alma. E, do mesmo modo que uma alma não pode vagar na terra sem vida, uma vida não pode existir sem uma alma (desculpem-me espíritas. Sim, vocês estão errados).
O fato é, e na verdade somente isso importa, que Guilherme não tem alma. Não sei se nunca teve, mas se sim, em algum momento ele a perdeu. Comecei a história culpando sua mãe, Madalena, por ter destruído sua alma, não sei se é o caso. Nem o demônio pode arrancar a alma de alguém vivo, pode comprar, isto é verdade, mas só será entregue em seu domicilio após a morte.
Guilherme é um garoto aparentemente normal; quero dizer, ele não tem alma, mas mesmo assim parece ser normal. Ele é um idiota e, portanto, pois estamos falando de casos gerais, normal. Ele, antes de dormir, reza todas as noites para Deus agradecendo por tudo e, o que é mais engraçado, por misericórdia por sua alma que, nós sabemos, ele não tem. É claro que rezar para Deus agradecendo pelas coisas é uma coisa inteligente a se fazer, inflar o ego Dele e se humilhar perante Ele é, certamente, algo que todos deveriam fazer (já que nossa eternidade está em suas mãos), todos que tem alma. Guilherme não tem alma. Mas reza. Todos os dias, sua mãe o obriga, mas cá entre nós, a alma dela deve ir pro inferno.
O que você faria se soubesse que não tem alma? Ora, você não vai para o inferno e, tão pouco, para o céu – vai, isso sim (e somente isso), para baixo da terra (com sorte, a qual Guilherme certamente não teria, em um belo caixão de mogno). Não tem porque rezar, não tem porque nutrir um amor pela humanidade, nem um falsificado como esses, quase todos, que vemos por aí. Não há motivo para não ser perfeitamente egoísta, para amar, a não ser que se ame para si próprio. Ora, Guilherme não é um santo, mas não sai por aí matando nem roubando e, às vezes, até sente pena de sua mãe, aquela sua monstruosa genitora que merece qualquer coisa menos piedade; ainda mais dele que, em suas mãos, teve a oportunidade de desfrutar da maldade humana em seu exemplar mais puro que se pode encontrar na terra. Alguém tem que avisá-lo que não tem alma! Para que possa viver a vida como ela o confronta: sem amanhã.
E, engraçado, a mentira é engraçada. É um pecado, dizem. Mas ela serve à alguma coisa, nem que seja à minha diversão e se for só isso, já basta. Mas, às vezes, nem a isso. Seria reconfortante se houvesse alguém lá em cima rindo de mim, rindo de todos, mas ora, não há. A verdade é que não falo com Deus, ou porque não sou digno ou porque Ele simplesmente não existe. Ah, não por coincidência meu nome é Guilherme, estou enterrado há uns tantos anos, a espera de Deus, que não vem e não virá. E, nossa... Pergunto-me, porque não me avisaram que não tinha alma? Por que não avisam? Bom, eu aviso; mas pensando bem, por favor, não ouça, ou finja que não ouviu.

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