quinta-feira, 13 de maio de 2010

Tumor




Gregori estava completamente desinteressado e de certa forma eu lhe dava razão. Mas por motivos diversos, eu estava com minha cabeça em outro lugar e ele com ela em lugar nenhum. Assistíamos a apresentação por mera formalidade, mas, em verdade – isso me ocorreu de repente – toda minha vida tem sido vivida por baixo das saias da falsidade. Minha vida tem se resumido a sentar em poltronas de anfiteatros, cheirar o ar gelado e mofado por horas a fio, enquanto homens, em geral pouco importantes, mas, sobretudo, pouco autênticos, falavam tudo menos qualquer coisa que poderia me interessar ou interessar a alguém. As vezes eu falava para outros “eus” sentados nas poltronas olhando os relógios como que tentando apressar o tempo, mas com o efeito contrário.
Hoje o tempo parou e o cara não parava de falar; eu chutaria que já falava por séculos não fosse tão familiarizado com tudo aquilo. A contra gosto aceitaria se tratar de não mais que uma hora, não obstante estava mais frio que o comum e, eu sentia um calor que viria da alma caso existissem coisas como almas. Mas não existem, é elegante em minha carreira ser cético e ateu, características que atestam uma certa legitimidade àqueles discursos vazios que, no entanto, são intermináveis, intermináveis! Perdão pela minha histeria, não se trata de um estado de espírito normal, mas é o caso que nesta manhã estou um pouco aflito, nervoso, desesperado. E Gregori, desgraçado, parecia meditar! Tantos anos respirando o ar podre dos – confortáveis – notáveis da mediocridade burguesa pareciam ter enfim resultado em alguma espécie de dano grave a minha saúde. Algum tipo de tumor, assim suponho, se desenvolveu parte em meus pulmões, parte em meu estômago. Hoje, nesta manhã, o tumor parecia dançar dentro de meu corpo. E só não o vomito porque tenho enorme experiência em engolir coisas indigestas; à força tudo se acomoda, em minha carreira não se pode colocar para fora o que não presta, de sorte que não me dou ao avesso por aí.
Minha peculiar interação com meu tumor, com o qual travei uma complexa negociação que consistia na busca de um bem comum para ambos, fez o tempo passar sem que eu notasse e, o palestrante estava para lá da metade de suas palavras de encerramento, de modo que o fim da apresentação coincidiria, com sorte, com um acordo entre eu e meu tumor nos seguintes termos: “tendo em vista que meu corpo é sua e minha morada, para um convívio aceitável você até me sufoca – isso é resultado de seu tamanho e nada se pode fazer em relação a isso – , mas não dance!”. E, de fato, o tumor me deu uma trégua assim que a palestra se encerrou. Saí com pressa enfrentando indesejados cumprimentos, sempre indesejados e falsos é verdade, mas se soma hoje minha necessidade de cair fora daquele anfiteatro e com urgência conversar com Gregori sobre a terrível noite anterior, a noite em que fomos monstros. Em verdade, monstros que somos.
Me dei com o exterior, o ar quente e úmido, impregnado de uma fumaça preta e pesada, mas respirar no momento é luxo. Gregori ainda não havia saído e, provocantemente, demorava. Quando saiu, visto livre de falsos cumprimentos, dirigiu-se a passos largos para seu carro tentando driblar as pessoas no seu caminho. Gregori é alto, demasiado, e andava rápido em direção ao seu carro, de modo que para alcançá-lo tive que trotar. Ele já quase entrava no carro quando, a uns cinco metros dele, tive que gritar:
- Gregori, Gregori! – ele olhou para trás, mas só porque foi impossível ignorar meus gritos; seu rosto carregava o “Oh, Deus! Foi por pouco...” num sincero e manifesto desgosto em trocar palavras comigo. Normalmente eu também faria questão de evitar uma conversa com ele, mas preciso falar sobre ontem. Oh, ontem...
- Ralmi... – é meu nome, eu o odeio até mais que odeio o cotidiano de minha vida, mas acho que, de certa forma, o mereço – Estou com um pouco de pressa...
- Precisamos falar sobre ontem – fui seco e direto, minha, nossa especialidade é a falsidade, mas a ocasião dispensava rodeios formais.
- Não há nada para se falar sobre ontem – Gregori se esquivava do assunto enquanto já projetava seu enorme corpo para dentro daquele carro ( a imagem dele dentro do carro era cômica e eu não sei se isso alivia ou intensifica a tensão da situação).
É apavorante e, de certo modo, surpreendente o modo relapso com o qual Gregori lidava com o pesadelo da noite anterior, de modo que tive que protestar:
- Matamos! Somos assassinos! E a uma criança! – minhas palavras soaram pouco mais altas do que eu queria ou do que era prudente se tratando de tão comprometedora confissão, mas mais do que isso, revelou a sinceridade de meu desespero.
- Está morto, falou bem, de sorte que não temos que enterrá-lo. Morto, não fala. Ontem morreu junto com ele todos os traços de nossa culpa. Então, Ralmi meu caro, esqueça. Esqueça assim como já esqueci; tão cedo hoje despertei, ontem não me existia mais; nada, nem culpa, nem remorso, nem ressaca. – Gregori parecia sincero em cada palavra, a noite anterior parecia não lhe tocar de modo algum e, seu cérebro em consonância com seu coração se operavam em um só mecanismo de racionalidade jurídica. Mas eu, ao contrário, estou devastado e nenhuma garantia de não implicações legais conseguia sequer me consolar:
- Como acordar e esquecer de ontem se sequer consigo dormir? Um câncer nasceu dentro de mim e ele se mexe vigorosamente! – o tumor voltava a se mexer rompendo o acordo agora pouco estabelecido, mas não só dançava: fazia um carnaval. A cólera (seu nome, como me revelou agora) indignou-se diante da passividade de Gregori (e talvez do mundo).
Gregori respirou fundo e já dentro do carro sentenciou através da meia janela aberta:
- Ralmi, sem formalidades, foda-se seu remorso. Digira-o, roa-o e remoa-o, mantenha em seu rabo, procure a bosta de um analista, entorpeça-se, que seja... mas não abra a porra dessa sua boca. Entendeu? Agora, estou com pressa, vou indo. – fechou toda a janela e ligou o motor do carro.
Atônito, nada pude fazer. A ameaça de Gregori me deixou perplexado, mas meu estômago parecia se rasgar (e na verdade se rasgava), os pulmões tornaram-se incapazes de captar oxigênio, o tumor dobrou ou triplicou de tamanho. Indigesto. Depois de engolir a merda de toda a parte durante toda minha vida, vomitei aquele tumor para fora e ele parecia carregar tudo aquilo.
Aquele tumor do tamanho de um porco médio saiu por minha boca e projetou-se direto sobre o capô do carro diante do pára-brisa dos olhos do, agora apavorado, Gregori. Não era só um tumor, tinha o formato de um tumor, mas tinha olhos de maldade – de toda a maldade que engoli e ruminei por todos estes anos; bocas com dentes da crueldade e dureza da verdade – a verdade que omiti por toda a minha vida. Indomável. A criatura pulsava a violência da vingança não só do garoto assassinado ontem, mas de tudo o que sempre esperou por vingança em toda minha vida, tudo que repousou em passiva negligência.
Infelizmente não me encontro em condições de narrar toda a fúria da criatura colérica, mas ela me pareceu soar a justiça; esta minha certeza talvez pudesse me redimir de meus erros, mas enquanto vou, sei que não mereço nada mais do que ir e, no entanto, vou com um certo orgulho de dentro de mim ter saído algo que levou tantos juntos e espero que exista um inferno para acomodá-los, porque a terra não lhes é merecida.

2 comentários:

  1. Tumor é o próprio mundo em que vivemos, e nós somos os pobres fígados.
    Muito bom e muito real, infelizmente.


    Te amo, e feliz 7 meses de namoro. Mais 7 meses e seremos ganhadores do Nobel! : )

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  2. Gi, todo o conjunto de sua obra (lamentavelmente não publicada) já vale o Nobel inédito para o Brasil.
    Te amo, feliz 7 meses de namoro : )

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