sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Pulei, mas não caí




Não é que estou desesperado, não é que o mundo está de cabeça para baixo, não são os problemas. Os problemas suscitam soluções, sob o caos repousa a esperança de dias melhores. Mas é que não tenho problemas, é justamente em função disto. Mormaço. Está tudo tão em seu lugar e meu lugar não é aqui. Desafiei o mundo durante toda minha vida e sempre fui vencido. O mundo me venceu, eu fracassei e fracassando percebi meu lugar – outro lugar.
Então, é justo nessa tarde de segunda – exatamente aquela tão distante de alguma tarde que poderia ter, por sua natureza, por seu lugar relativo aos outros dias do calendário, algum significado – que eu desisti. Para o alívio e a felicidade de todos que tiveram o desprazer de presenciar, de algum modo, minha fracassada tentativa de viver, eu desisti. Cheguei meio bêbado em casa, cambaleando as razões pelas quais sempre bebi, isto é, tentar ser algo que nunca fui. O álcool sempre foi muito simples em minha vida, eu bebo para engolir, para engolir a mim mesmo, aos outros, a minha vida. E, não à toa, meu estômago sempre foi fraco, minhas tentativas de digerir meu miserável cotidiano sempre acabaram no vaso sanitário.
Não por acaso me casei com a solidão. Não se sintam tristes por mim, nossa sociedade superestima os malefícios de se viver sozinho. Confesso, no entanto, já cambaleei, já ajoelhei sob os pés da vida, mas ela cuspiu em minha cara, graças a Deus. Mas não acredito Nele; morrer, se deixar morrer, ter papel predominante em sua própria morte, não tem necessariamente e, na verdade, raramente tem alguma relação com a suposta vida após a morte; diz respeito ao agora e ao nunca mais. Mas, enfim, embora já tenha fraquejado, eu persisti em meu único princípio de vida – não ter princípios, confrontar os princípios, desafiar o mundo. É por isso que nunca casei, nunca me entreguei resignado, ao lado de uma cúmplice, aos grilhões da escravidão os quais o mundo em sua cínica conveniência chamou de viver.
Mas ser um contestador, ainda que se apresente a mim como a única alternativa possível, é escuro e silencioso. Meu apartamento não tinha nada que me convidasse a voltar da rua, mas já experimentou dormir na sarjeta? Não cheguei em casa decidido, mas não foi uma decisão imediata que tomei enquanto olhava a vista da sacada do oitavo andar, o vento que toca minha face enrugada (precocemente)... e como seria poético se balançasse meus cabelos que, no entanto, o mundo, pois é, resolveu levar... Não foi fruto de nada disso. A decisão foi se desenvolvendo à luz ( na verdade à falta dela) dos anos, durante cada segundo mal vivido que sonhavam, embora temessem, o dia em que simplesmente deixariam de ser vividos.
Meu desafio final, enfim vencerei o mundo. “Ainda que esteja morto viverá”, bom, talvez não, mas a morte é minha, é o modo final de olhar para o mundo e dizer-lhe triunfante, depois de tanto dele ter apanhado: “Tchau, cretino!”. Joguei-me enquanto, num microssegundo, que precedeu o início de minha queda, me deparei com um dilema que, agora, pensando bem, deve ser clássico aos mortos voluntários. Pensei sobre o caráter de minha decisão, seria ela uma demonstração de coragem ou de covardia? Em um relance poético sentenciei: “Covardia corajosa!”. Coragem covarde? Nada disso. Pulei, mas não caí.
Uma fábula surge em minha cabeça. Ela é recorrente em minha vida, como um pesadelo que martela em minha mente, todos os dias, durante anos, só que ela aparece diante de mim quando estou acordado. Fui eu quem criou, do nada – como num sonho. Nela eu sou um cão – e acaba aqui o que há de positivo na fábula. Estou farejando algo ao longo de um labirinto. Mas não farejo um odor, farejo uma idéia – não sei qual. Quanto mais intensa e densa a idéia que farejo, mais para dentro do labirinto estou e, portanto, mais perdido. Quando sei que estou muito perto dela, de repente não sou mais um cachorro. Sou um humano, sou eu mesmo. Perdido e sem faro. Daí em diante vago perdido pelo labirinto, sem saber se em busca de uma idéia a qual não me resta nem um remoto traço da época em que ainda gozava dos talentos caninos, ou se da saída a qual quanto mais procuro mais distante estou. E, assim, vivi infeliz para sempre...
Não sei ao certo porque esta fábula me veio neste momento, o fato é que pulei, mas não caí. Não posso dizer com precisão o que me acabou de acontecer, na verdade desconfio da dos fatos que se sucedem, embora os testemunhe. Pulei da sacada e ao invés de cair eu subi. Não como um balão de hélio; o mundo virou de ponta cabeça e, em um primeiro momento, eu andava no céu como se este fosse um chão sólido e, acima da minha cabeça, estava o chão, agora céu. Mas foi assim só por um momento, em seguida o céu voltou para cima da minha cabeça e o chão estava sob meus pés – eu estava intacto, pisando a calçada em frente ao meu prédio. As pessoas andam alheias, os carros seguem seus caminhos ignorando o que acabou de acontecer.
Não obstante o fato fantástico que acabara de se suceder, embora a o mundo tivesse dado uma volta ao redor de mim, algo permaneceu igual. Desafiei o mundo e fui vencido. Tentei desfrutar do único aspecto de minha vida que cria dominar, mas, oras, não caí! “E por quê?” gritei, em súplica, com os braços voltados para os céus, em uma cena cinematograficamente ridícula. Como o silêncio me respondeu, segundo o esperado, nada, resolvi, num lúcido (se considerarmos as circunstâncias) acesso de insanidade (se levarmos em conta a literatura psiquiátrica), eu mesmo responder. Mas não era exatamente eu... ok, o diálogo acabou de tender fortemente para o lado da loucura. “Porque escolheu um adversário muito grande para vencer sozinho. E ao mesmo tempo não tem o apoio de uma sombra sequer. Cuspiu em todos os princípios da guerra, quis o mundo sem nem ao menos ter controle de si próprio. És um fracasso em si mesmo, qualquer tentativa de conquistar qualquer aspecto da vida se traduz na exteriorização de seu fracasso interno...” e continuaria me ofendendo ad infinitum se eu não interrompesse. Parece, de certo modo, um diálogo com minha baixo alto-estima, ou a visão crítica sobre mim mesmo (latente e escondida em algum canto de meu subconsciente), que são, na verdade, as mesmas coisas. Mas não era. De fato alguma força exterior tomou conta de meu corpo e, assim, construía um diálogo comigo mesmo.
“O que eu podia fazer?” respondi em tom de alto-piedade. “Não nasci para aceitar a pressão do mundo. O que poderia fazer se não tenho os meios para mudá-lo? Aceitar? Nasci com a peça da resignação faltando...” no que a ‘entidade’ retrucou: “Nasceu sem quase nada, na verdade. Caso a construção da vida fosse uma linha de montagem, você seria um refugo, um produto estragado que fugiu aos olhos do controle de qualidade. Mas não é este o problema... nascem pessoas erradas todos os dias...” “Mas a maioria delas passa pelo mundo sem serem percebidas”, interrompi triunfante, crendo em minha superioridade revolucionária. “...Mas és uma fraude. És o protótipo da fraude. Veste Napoleão, Marx e Gandhi, mas és oco; tens a roupa, mas lhe falta aquilo a que ela veste. Quando a fortuna lhe bate a porta, te falta virtú.” Eu não consigo acreditar: “Está sendo injusto... a sorte só conheço de nome. O mundo sempre me negou oportunidades, sempre contrariou meu projeto...”. “Vejo que as palavras se esgotarão sem preencher a nada. Vou tentar fazê-lo entender de outro modo. Ande, faça o caminho daqui até o parque central; esta caminhada, acredito, mudará sua vida”.
São cinco ou seis quarteirões de meu prédio até o parque central. Embora cético quanto à possibilidade daquela caminhada “mudar minha vida”, comecei a andar. As previsíveis ruas noturnas dessa cidade expõem seus tantos transeuntes que desfilam a sujeira que os respeitáveis cidadãos sempre escondem do público, guardando entre quatro paredes, com um efeito de hipocrisia moral. Em um caso ou no outro, o resultado final é mediocridade.
“Seu grande problema. Talvez o pior dos seus inimigos, aquele a quem nunca sequer ousou enfrentar... mas continua andando, não creio que esteja pronto para aceitar”. Diante daquelas palavras, continuei meu caminho, jogando meus olhos críticos a cada detalhe que me cerca. Há menos de meio quarteirão está aquele bar iluminando a esquina com as trevas espirituais dos alcoolizados que, diferente de mim, bebem para celebrar a decadência humana. A mesma humanidade que, tão logo se fez existir, desce as escadas rumo ao precipício sem fim da vida. Já em frente do bar, falei comigo, quero dizer, falaram comigo através de mim: “Te vejo sentado no bar compartilhando suas frustrações tão menos únicas quanto você faz parecer em suas observações idiotas sobre os bêbados quase a caírem no chão”. Não respondi, não entendi bem o que quis dizer, ele... eu... enfim. Mas aquelas palavras entraram de um jeito curioso em minha cabeça, a serem digeridas pela reflexão de meu raro discernimento racional. Para calar o constrangedor silêncio, continuei andando. Já estou próximo do parque central e, no entanto, minha vida ainda não havia mudado para sempre... Lá está Mucoco, o vira-lata preto e cinza, sujo e fedorento, deitado em frente à fachada daquela padaria. Isso quer dizer que já passam das quatro. Sempre uma hora antes das cinco, que é a hora que a padaria abre, o cão espera por um pedaço pão, que sempre recebia do bondoso, embora burríssimo, padeiro. Passar por lá àquela hora significava uma oportunidade de eu lembrar como os cães são superiores aos humanos – sinceros e belos, roem o mundo e sobrevivem a ele o enfrentado. “Certo” – começou aquela voz – “agora você está delirando. Você admira os cachorros sobretudo porque são incapazes de reconhecer a si próprios. Mas o que neles é incapacidade, em você é fraqueza, é covardia”. “O que exatamente quer dizer com isso?”. “Ainda não. Chegue ao parque, está quase entendendo, acho. Mas antes chegue ao parque.”
O parque estava fechado, ele abre às seis horas. “Devo esperar?”. “Já esperou demais. Leia a placa”. O portão metálico tinha uma placa parafusada a ele. Nunca havia lido nada além das palavras em destaque, escritas em letras maiúsculas: “FECHADO”, mas havia um texto interessante o qual nunca reparei, lê-se: “Horário de funcionamento: das 6h às 20h”, mas não é esta a parte interessante, o texto segue: “O Parque Central não funciona durante a noite. Por favor, pedimos sua compreensão, os animais precisam descansar. As regras têm sentido, As regras se baseiam nos hábitos dos animais. As regras são naturais.”. Estava a contrariar a mim mesmo, a desconfiar de minhas convicções, passo a estranhar a mim mesmo...
A voz então começou: “Não que eu tenha que lhe dar satisfação, mas me preocupo com sua incredulidade, com sua teimosia doentia... este é o primeiro ponto. O segundo ponto... você já se deu conta? Sobre o quão comum tu és? Que você mesmo, tanto quanto aqueles que te rodeiam, é um medíocre. Encare isso, você é medíocre. Percebe a mediocridade em cada esquina, em cada bar, igreja, padaria ou escola, mas não percebe aquela que lhe está mais próxima, sua própria mediocridade. Aquilo que te limita, aquilo que está entre suas ambições e o mundo – você.”
Não precisei responder, tremi diante da realidade e meu semblante traduziu que eu acabara de digerir as coisas que sobre mim se jogaram ao curso de minha vida, mas, sobretudo, digerira a mim mesmo e só assim pude entender, mais ou menos, o mundo e a vida sob os olhos de uma pessoa que renasce justamente através das bases as quais sempre tentei derrubar – as da resignação, mas agora sobre uma nova visão: aceitação da realidade.
“Agora já pode cair.”.
Caí, morri, venci e perdi – vivi.